Um quebra-cabeças chamado dívida pública

Desde o Real, débito pulou de 30% para 60% do PIB, e País vive círculo vicioso, em que juros altos dificultam o pagamento

 

 

No dia 25 de novembro de 1877, A Província de São Paulo, o nome deste jornal no tempo do Império, publicou um editorial sobre a dívida pública, intitulado Onde iremos parar? “Os cofres provinciais exaustos matam os bancos, aceitando dinheiro dos particulares a um juro elevadíssimo, e assim mesmo não podem satisfazer compromissos imprevidentemente contraídos”, denunciava o jornal. Relatório do governo britânico sobre o mau uso do dinheiro emprestado “desacreditava o Brasil, pintando-o como o mendigo velhaco e gastador, que vive a prevalecer-se de todos os pretextos para arrancar dinheiro”.

Cento e vinte e cinco anos depois, paramos aqui: a dívida pública líquida brasileira representa 60% do Produto Interno Bruto (PIB), ou seja, quase dois terços de tudo o que o País produz em um ano, e mais as suas reservas. A dívida enreda o País num círculo vicioso, no qual os juros altos refletem os temores sobre a capacidade do governo de honrá-la, ao mesmo tempo que reduzem essa capacidade. O mesmo acontece com o dólar, e a alta carga tributária busca suprir as necessidades fiscais do governo, incluído o pagamento dos juros, e inibe o crescimento da economia, que reduziria a relação dívida/PIB.

Desde a introdução do real, essa relação dobrou, de 30% para 60%. O governo Fernando Henrique Cardoso afirma que a maior parte desse aumento é composta pelas dívidas dos Estados e municípios, evidenciadas com o fim da inflação, a explicitação de dívidas que antes não eram reconhecidas (os chamados esqueletos) e a reestruturação do sistema bancário, ao lado do crescimento das despesas obrigatórias, como a Previdência e a folha de pagamento dos funcionários públicos estáveis.

Esses argumentos não sensibilizam o economista Celso Martone. “O que importa é o déficit ano a ano”, diz o professor da Faculdade de Economia e Administração (FEA) da Universidade de São Paulo (USP). “O governo Fernando Henrique Cardoso realizou a maior expansão fiscal da história do Brasil.” Em 1994, compara Martone, o governo gastava cerca de 30% do PIB. Hoje, gasta 40%. Desses, 2% vão para investimentos e 38% para custeio. Dos quais, 9% em juros e 29% em demais despesas correntes do governo. Quanto ao juro, “ele é resultado de dívida, que é resultado de gasto”. Quanto às dívidas dos Estados e municípios, contesta o economista, elas estavam incluídas na dívida líquida do setor público consolidado.

A participação da dívida externa na dívida pública global tem caído. Em 1991, a dívida interna representava 13,97% do PIB e a externa quase o dobro: 24,16%. Hoje, a dívida interna soma 46,23% do PIB, quase quatro vezes o montante da dívida externa, de 12,39% do PIB.

O problema é que a dívida interna tem sofrido dolarização crescente, na proporção dos temores dos investidores quanto à robustez do real. De dezembro de 1999 a junho deste ano, a fatia da dívida pública mobiliária interna indexada ao dólar saltou de 22,82% para 29,87%. Assim, mais de 40% da dívida pública total está dolarizada.

É bem verdade que o governo usa os títulos indexados ao dólar para fazer política cambial. Mas eles passam a fazer parte da dívida. As altas do dólar, ao aumentar as incertezas sobre a capacidade do governo de honrar a dívida, contaminam também os 60% restantes, remunerados pelos juros, que também tendem a subir.

A tendência de dolarização da dívida deve se inverter a partir do ano que vem, quando, de acordo com a Lei de Responsabilidade Fiscal, o Banco Central não poderá mais emitir títulos cambiais. “Em regime de câmbio flutuante, não cabe aos contribuintes dar proteção cambial às empresas. Elas que façam suas apostas”, argumenta Martone. Os bancos protegem seus clientes – em geral, empresas – das eventuais desvalorizações cambiais com esses títulos. Para honrá-los, o governo busca recursos na arrecadação – em reais.

No julgamento da política monetária e cambial da chamada Era FHC, muitos economistas criticam o primeiro mandato, caracterizado pelo real sobrevalorizado, e elogiam o segundo mandato, quando o dólar passou a flutuar. “Faz-se uma crítica ao ‘modelo econômico’, mas, em termos de política econômica, o segundo mandato foi muito mais adequado do que o primeiro”, avalia Fábio Giambiagi, gerente de Macroeconomia do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

“No primeiro governo Fernando Henrique, a taxa de juros era utilizada para manter a taxa de câmbio naqueles níveis, porque era preciso atrair dinheiro externo para financiar o consumo”, lembra Sérgio Werlang, diretor de Política Econômica do BC entre 1999 e 2000. “Seria bom se essa fase tivesse durado menos.”

A política de geração de superávits primários, que deu novo alento à noção geral de pagabilidade da dívida, por sua vez pressuposto da queda da taxa de juros, é uma novidade posterior à desvalorização do real de janeiro de 1999. Em 1995, o superávit primário (receita menos despesas, sem contar o pagamento de juros da dívida pública) foi de apenas 0,36% do PIB. No acumulado deste ano, está em 3,28%, e a meta é de 3,75%.

Giambiagi argumenta que o modelo não é o responsável pelos problemas atuais, mas sim “a combinação de efeitos negativos acumulados nos anos anteriores e um contexto externo horroroso”. Os vizinhos brasileiros, do Uruguai à Venezuela, que são os mercados para os produtos manufaturados brasileiros, têm sofrido instabilidades econômicas e políticas, deprimindo as exportações. Além disso, o panorama externo adverso levou à deterioração de cerca de 23%, desde 1997, dos preços dos produtos brasileiros.

Estudo do diretor de Política Econômica do Banco Central, Ilan Goldfajn, publicado no mês passado, garante que a dívida pública brasileira é perfeitamente pagável e poderá ter trajetória declinante nos anos seguintes, se os próximos governos mantiverem a política de superávits primários, adotada pelo atual governo (ver quadro abaixo).

“A dívida é bastante manejável”, concorda Werlang, hoje diretor de Economia e Arbitragens Financeiras do Banco Itaú. “Os números não estão absurdos. Depois de uma enorme desvalorização do real, a dívida pública brasileira representa 60% do PIB. Na Argentina, depois da desvalorização, a relação dívida/PIB é de 115%.” Segundo o economista, “é por conta do passado, principalmente do Plano Collor, quando muitas medidas mexeram com a indexação da dívida pública, que as pessoas físicas do País, que são as detentoras dos títulos da dívida pública, exigem taxas de juros elevadas”.

O ex-diretor do Banco Central também registra aumentos de gastos muito grandes no governo Fernando Henrique, com Previdência, saúde e “uma quantidade grande de programas ditos sociais”. Assim, Werlang acha que há margem para o próximo governo cortar gastos e ampliar o superávit primário: a atual meta, de 3,75% do PIB, é “razoavelmente confortável sem choque externo”.

“A questão crucial é saber se o próximo governo vai estar disposto a arcar com os eventuais custos políticos de produzir um superávit primário que não dê margem a dúvida quanto ao seu compromisso de honrar a dívida”, adverte Fábio Giambiagi. “Se for mantido o coração da política econômica – o tripé metas de inflação, austeridade fiscal e flutuação cambial -, mais cedo ou mais tarde, o prêmio chega.” 


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