Uma história de ineficácia, desconfiança, inteligência e ousadia

Fernando expõe uma polícia que ignora procedimentos básicos e avanços da ciência

 

Cena 1. O delegado envia três investigadores para apurar suspeita de que o homem mais procurado de São Paulo se esconde num flat, fora de sua circunscrição. Não avisa as divisões da polícia que estão cuidando do caso. Apesar da superioridade numérica e do elemento surpresa, dois morrem e o terceiro cai ferido. O seqüestrador escapa.

Cena 2. A polícia se engaja numa caçada humana ao seqüestrador convertido em assassino. À motivação política – o envolvimento de um dos empresários mais importantes do País e o interesse do governo no caso, manifesto em telefonema do presidente Fernando Henrique Cardoso durante o seqüestro de sua filha -, soma-se agora a motivação corporativa: a sede de vingança.

Mesmo com esse grau de mobilização, fica desguarnecida a residência da vítima e cena do crime, que o bandido invade sem enfrentar resistência.

Cena 3. A solução do caso exige a presença do governador do Estado, secundado por seu secretário de Segurança e pelo comandante-geral da Polícia Militar, que, no dia seguinte ao episódio, faz duas declarações reveladoras: quando soube que a casa de Silvio Santos havia sido invadida, intuiu imediatamente que se tratava de Fernando Dutra Pinto; e ele provavelmente retornara movido pelo medo de represália da polícia.

Tudo parece tão fora de lugar que, à primeira vista, o leitor julgaria que o único a agir de forma coerente é o bandido. Seus atos, embora torpes, são explicáveis, como atesta o coronel Rui Cesar Melo, que comanda a PM. Não é bem assim. Há uma explicação perfeitamente lógica para cada uma das atitudes dos policiais. Se as causas se revelarão ou não, é outra questão; que existem, parece inegável.

A mais enigmática é a cena 1. Por que o delegado Armando Béllio, titular do 91.º Distrito Policial, da Ceagesp, quis que seus homens ficassem a sós com Fernando, alienando do caso a Delegacia Anti-Seqüestro (Deas), que o investigava, e o Grupo de Ações Táticas Especiais (Gate), que poderia intervir, na hipótese de o criminoso tomar reféns no flat? Por que seus três homens, experientes e preparados, sucumbiram à ação de um solitário e, segundo a polícia, inexperiente? As respostas estão no campo da especulação, ficando para o leitor escolher que hipótese é menos aterradora.

“Foi um erro absolutamente desnecessário os policiais agirem por si como se fosse uma questão pessoal. A polícia tem de estabelecer procedimentos, passos a seguir nesses casos”, diz o pesquisador Luís Antônio de Souza, do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo. “A polícia tem de botar a mão na consciência e reconhecer seus erros. Sua função é pública.

Ela não está lá para resolver os próprios problemas.” Sejam de que natureza forem. E aqui se chega à cena 2.

Tática – Qual o grau de previsibilidade da volta de Fernando à casa de Silvio, nove dias depois de invadi-la para levar Patrícia Abravanel? Desde os anos 20, nos Estados Unidos, a psiquiatria forense subsidia a polícia na montagem de hipóteses sobre os próximos passos do criminoso, a partir dos rastros que sua personalidade vai deixando no trajeto de suas ações. Nos últimos 20 anos, essas técnicas se revelaram de grande valia também em países mais ou menos desenvolvidos, como o Canadá e a Argentina.

No Brasil, foi inaugurado há quatro meses o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica, do Hospital das Clínicas. Seus integrantes anseiam por uma aproximação com a polícia, para dar sua contribuição. “Um perfil científico e atualizado da personalidade criminosa é um elemento-chave no combate à violência”, afirma o cientista político Edgar Barros, secretário acadêmico do núcleo. “Sem isso, esse combate se torna episódico. Principalmente quando se trata de um bandido dessa periculosidade e tão desconhecido.”

A julgar por suas ações, Fernando é “um indivíduo inteligente, audaz, sem sentimentos, que não consegue se colocar no lugar dos outros que sofrem”, define o psiquiatra Sérgio Paulo Rigonatti, presidente do núcleo, que reúne 30 profissionais de diversas áreas. “Atemorizado, agindo para se salvar, ele foi para o único lugar onde estaria protegido.”

O argumento remete à cena final – a do medo justificado. “O fato de ele voltar para a casa de Silvio Santos e de exigir a presença do governador do Estado dá o significado do medo real”, observa Luís Antônio de Souza. Na cena 1, Fernando levou a melhor no confronto com a polícia. Na curta noite que se seguiu, concluiu que não teria chances contra a corporação inteira.

Buscou proteção superior a ela, não na instituição abstrata do Estado, da qual a polícia é parte, mas na pessoa concreta do governador Alckmin.

E a população? Ela também “não confia nas instituições de segurança pública e com razão”, julga o especialista. O que é ruim para a eficácia da polícia.

“Noutros países, muitos casos como esse se resolvem com o apoio (na forma de pistas) da população, como sucedeu com o (terrorista americano) Unabomber.”

A desconfiança favorece a ineficácia, que confirma a desconfiança. Ousadia e inteligência completam os elos entre uma cena e outra.


 

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