No fundo, espanhóis querem vingar-se de Franco

Como não puderam julgar seu próprio ditador, processar Pinochet os ajudaria a limpar a consciência, diz pesquisador

 

Os espanhóis gostariam de poder fazer com o ex-ditador chileno Augusto Pinochet o que não puderam fazer com o ex-ditador espanhol Francisco Franco. De acordo com o pesquisador Marcelo Pollack, do Instituto de Relaciones Europeo-Latinoamericanas, de Madri, essa é a explicação comumente dada pelos analistas na Espanha para a ferocidade com que a opinião pública espanhola se voltou contra o senador vitalício chileno, diante da perspectiva de ele vir a ser extraditado da Grã-Bretanha e julgado no país.

As pesquisas indicam que entre 70% e 80% dos espanhóis gostariam que o pedido nesse sentido do juiz Baltasar Garzón prosperasse. “Os espanhóis não puderam julgar Franco” – que morreu no poder, em 1975, depois de comandar o país por quase quatro décadas, a partir de 1936. “Simbolicamente, é como se processar Pinochet limpasse a consciência dos espanhóis.” Pollack salienta que essa é a visão predominante, e não dele, que nem sequer é espanhol.

A biografia do pesquisador passa pelos três países envolvidos diretamente no episódio da detenção de Pinochet: nasceu no Chile, foi para a Inglaterra aos 6 anos, onde viveu até dois anos atrás, quando se transferiu para a Espanha.

Pinochet não foi um ditador qualquer, sobretudo para os espanhóis: “Foi o único líder estrangeiro que veio para o enterro de Franco”, registra Pollack.

Além disso, “Pinochet personifica as ditaduras latino-americanas, foi a bête noire dos movimentos estudantis, símbolo de tudo o que aconteceu de ruim na América Latina.” Na opinião de Pollack, “se se tratasse de um (Alfredo) Stroessner (do Paraguai) ou de um (Hugo) Bánzer (da Bolívia), não haveria esse interesse todo”.

As investigações e os processos movidos não só na Espanha, mas também na Suíça, na França e na própria Grã-Bretanha têm como fio condutor as acusações de tortura e assassinato de cidadãos desses países durante a ditadura de Pinochet (1973-90). No Chile, assim como no Brasil e na Argentina, a transição para a democracia pressupôs o arquivamento dessas denúncias.

Para os chilenos, Pinochet é muito mais que um símbolo. Sua detenção e a possibilidade de sua extradição e julgamento lançaram o país numa turbulência política e social dificilmente mensurável fora do Chile, advertiram cientistas políticos em Santiago, ouvidos pelo Estado.

“O episódio afetou a transição democrática do Chile”, resume o professor Guillermo Holzmann, do Instituto de Ciência Política da Universidade do Chile. “Recolocou sobre a mesa questões como a dos desaparecidos, do valor da reconciliação e da negociação, mostrando que o pacto da transição democrática não está consolidado.”

Holzmann alerta para “a preocupante polarização” no Chile. “As opiniões estão muito divididas”, concorda o cientista político Emilio Menezes, da Universidade Católica do Chile. Segundo Menezes, cerca de 40% dos chilenos crêem que Pinochet não deva ser julgado nem dentro nem fora do Chile. Outros 35% ou 40%, acham que ele só pode ser julgado no Chile. Os restantes 20% a 25% ficaram contentes com a perspectiva de ver Pinochet

julgado, ainda que fora do Chile. Para esse setor, não se faz justiça no Chile, e a justiça vem antes da soberania nacional – valor que pareceria estar em jogo. Mas Menezes acha que os “ânimos estão mais calmos agora”, depois de a democracia chilena ter passado por um teste.

Seja como for, tanto os analistas chilenos quanto o pesquisador brasileiro Paulo Wrobel, do Royal Institute of International Affairs, em Londres, consideram que a base jurídico-institucional para o julgamento de Pinochet fora do Chile parece frágil demais e essa é uma questão de Estado. A recepção dele em Londres com tratamento de ex-chefe de Estado contribuiu para essa visão.

Os três pesquisadores seguem a linha segundo a qual a acusação de genocídio não cabe e o arcabouço legal não está completo para comportar julgamentos internacionais de crimes políticos cometidos por um ditador em seu país.

“Os crimes de que Pinochet é acusado foram cometidos há mais de 15 anos, enquanto os tratados no âmbito da União Européia para julgar esse tipo de crimes foram firmados nos últimos cinco anos”, raciocina Holzmann, referindo-se aos juízos sobre a Bósnia e Ruanda. “No conceito de Justiça, não pode haver um marco jurídico que não condiga com a realidade política na qual o fato julgado se produziu.”

Não se trata de gostar ou não do ex-ditador. “Pinochet merece ser julgado,

mas compete ao sistema político e à Justiça do Chile resolver essa questão”, diz Wrobel.

No Chile, a crise mudou o cenário político. A esquerda saiu prejudicada, na opinião dos dois cientistas políticos chilenos. O candidato favorito à eleição presidencial de dezembro de 1999, o socialista Ricardo Lagos, assumiu uma atitude “ambígua”, diz Menezes, afirmando que cabia aos tribunais decidir se Pinochet deveria ser extraditado e julgado ou não. “O eleitorado independente que apoiava Lagos se afastou.”

 

A última pesquisa de intenção de voto, realizada imediatamente antes da detenção de Pinochet, dava 40% a Lagos, 33% ao direitista Joaquín Lavin e 11% ao democrata-cristão Andrés Zaldívar. “Todos coincidem em que Lagos vai cair na próxima pesquisa”, garante Menezes. Holzmann concorda. O insucesso do socialista ilustra os sentimentos da maioria dos chilenos. No embate entre o orgulho patriótico ferido, de um lado, e a aspiração de uma parcela da população para que se fizesse justiça, o primeiro sentimento prevaleceu.

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