Pinochet caiu em armadilha ao decidir viajar

O ex-ditador ignorou advertências do governo chileno de que o processo contra ele na Espanha seguia adiante e preferiu confiar em garantias de magistrados espanhóis de que o caso não vingaria

 

Ao viajar para Londres, no dia 22 de setembro, o general da reserva Augusto Pinochet caiu numa armadilha. O ex-ditador ignorou advertências feitas pelo governo chileno de que o processo contra ele seguia adiante na Espanha e o visto diplomático não serviria para livrá-lo de um pedido de extradição.

Preferiu confiar em garantias que lhe haviam sido transmitidas por magistrados espanhóis de que o processo contra ele não vingaria.

Informações de fontes ouvidas pelo Estado em Santiago e Londres e também de membros do governo e militares chilenos citados pela imprensa do Chile permitem reconstruir a intrincada trama de advertências, negociações e garantias que precederam a viagem a Londres. E finalmente explicam por que o ex-ditador decidiu pagar para ver, contra todas as evidências exteriores – no que configura o grande erro de cálculo de sua vida.

Em outubro de 1997, o auditor-geral do Exército, general Fernando Torres, desembarcou em Madri com uma missão que lhe fora conferida pelo então comandante da Arma, Augusto Pinochet: sondar os magistrados sobre o estágio em que se encontravam as investigações contra o ex-ditador – acusado, na Espanha, de responsabilidade em torturas, desaparecimentos e mortes de cidadãos espanhóis.

Torres valeu-se de contatos estabelecidos por ex-adidos militares na Embaixada do Chile na Espanha, que travaram boas relações com magistrados agora ocupantes de postos-chave na Justiça espanhola. Alguns desses magistrados já haviam estado no Chile, a convite do Exército, para participar de seminários. Tecnicamente falando, a missão de Torres foi um êxito. Com a ajuda de seus contatos, chegou ao juiz que então conduzia o caso, Manuel García Castellón.

Na bagagem, o general levava documentos destinados a provar a legitimidade do governo Pinochet, como uma declaração de 1973 da Câmara dos Deputados e sentenças judiciais que eximiam o regime de participação em atentados e supostamente demonstravam o funcionamento de uma Justiça imparcial no Chile.

O juiz García Castellón observou que os documentos só poderiam instruir o processo se fossem apresentados formalmente. Torres não contava com essa tecnicalidade, mas acabou cedendo: segundo o protocolo, o general “compareceu” perante o tribunal espanhol. De acordo com as fontes, os magistrados asseguraram ao general que “o processo já estava praticamente esgotado” e acabaria sendo “torpedeado pela Audiência Nacional”, a instância encarregada de autorizar a continuidade de processos e endossar pedidos de extradição.

Menos de um ano mais tarde, no início de setembro, o general Pinochet, acometido de fortes dores decorrentes de hérnia de disco, requisitou do Ministério das Relações Exteriores passaporte oficial, com carimbo de missão diplomática, para viajar para Londres e submeter-se a uma cirurgia. Depois de consultar a embaixada chilena em Madri acerca do andamento do processo contra Pinochet, o chanceler José Miguel Insulza recomendou que o ex-presidente não viajasse.

O chanceler advertiu-o de que o passaporte diplomático não lhe garantiria imunidade, uma vez que ele não viajava em missão oficial. O estatuto do próprio serviço público chileno exclui enfermos e licenciados de missões oficiais. Já a Constituição impede parlamentares de exercer funções diplomáticas. Graças a um dispositivo da Constituição que ele mesmo outorgou, Pinochet é senador vitalício.

A reação de Pinochet, segundo as fontes, beirou a “arrogância”. O general retorquiu que sabia que o passaporte não lhe daria imunidade – talvez apenas comodidade -, mas o problema de Madri “estava resolvido”, insinuando que as informações da embaixada estavam defasadas. Ele lembrou que contava com “grandes amigos” em Londres, numa referência à ex-primeira-ministra Margaret Thatcher. Amigos militares chegaram a oferecer-lhe trazer de fora uma equipe médica, o que ele recusou com a habitual firmeza.

Pinochet partiu para Londres – e para uma seqüência sinistra de confirmações das advertências que ouvira do governo e dos amigos. Nem bem o general deixava a mesa de cirurgia, numa clínica de Londres, tornando-se incapacitado para uma viagem de emergência, a engrenagem da Justiça espanhola era posta em marcha pelo juiz Baltasar Garzón. Pinochet foi operado dia 11. No dia 16, a Justiça inglesa expedia o mandado de detenção, a pedido da Espanha.

A imunidade diplomática não é o único argumento central da defesa enfraquecido pelas normas aceitas no próprio Chile. O mesmo acontece com o da territorialidade da Justiça – ou seja, crimes cometidos num país não podem ser julgados noutro. O Chile é signatário de tratados internacionais em favor do julgamento de crimes contra a humanidade. Sua militância nessa área tem sido comparada à dos países escandinavos. Santiago apoiou ativamente esses julgamentos no caso de Ruanda e da Bósnia. Terá de explicar a radical mudança de posição no mês que vem, quando se reúne a Comissão de Direitos Humanos da ONU.

O general Fernando Torres também não ajudou muito, e não apenas por ter sido o portador das garantias que ludibriariam Pinochet. Os promotores argumentam que, ao protocolar a entrega dos documentos em defesa do ex-ditador no tribunal espanhol, o general formalizou o reconhecimento, pelo Exército chileno, da competência da Justiça da Espanha de julgar seu comandante.

Afinal, na prática, o auditor-geral do Exército instruiu, com peças de defesa, o processo que lá corria contra o então comandante da Arma.

 

Parece certo que Pinochet caiu numa armadilha; difícil determinar em que medida essa armadilha foi fruto da malícia de magistrados espanhóis, da incompetência de colaboradores e do excesso de autoconfiança do próprio Pinochet.

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