Pleito chileno marca mudança no sistema político

Votação em que Lagos é favorito, mas Lavín pode surpreender, dá início à bipolarização da política

 

SANTIAGO – Tudo pode acontecer hoje no Chile. Apesar do favoritismo do governista Ricardo Lagos, segundo as pesquisas (ver quadro), o principal candidato da oposição, Joaquín Lavín, pode surpreender.

Pode haver segundo turno, como pode não haver. Independentemente do resultado, uma coisa é certa: essas eleições entrarão para a história como o marco de uma grande mudança no sistema político chileno.

Esta é uma disputa entre dois perfis pessoais, dois modos de fazer política e dois grupos ideológicos originalmente bastante distintos.

Mais que isso, é um embate entre dois pólos. “É o fim da tripolarização e o início da bipolarização”, afirma o cientista político Emilio Meneses, da Pontifícia Universidade Católica do Chile.

É, também, aponta o analista, “o ocaso da Democracia Cristã (DC)”, que dá lugar a apenas dois vértices político-ideológicos: a esquerda, representada pelo Partido Socialista, de Lagos, e a direita, integrada pela União Democrática Independente (UDI), de Lavín, e a Renovação Nacional (RN), que também o apóia. Desde sua criação, em 1958, é a primeira vez que a Democracia Cristã concorre a uma eleição presidencial sem candidato próprio.

O apoio da DC a Lagos consumou profunda divisão no partido, que, até então, era tratada pitorescamente, na distinção entre os “guatones” (barrigudos), mais à direita, e os “chazcones” (cabeludos), mais à esquerda.

O presidente Eduardo Frei, democrata-cristão, não se empenhou na vitória do candidato de seu partido, o senador Andrés Zaldívar, da ala direitista, em maio, na primária da Concertación, a coalizão entre DC e PS que governa o Chile há uma década.

Num sinal do embaralhamento político-ideológico em marcha no Chile, Zaldívar flertou com os partidários do ex-ditador Augusto Pinochet (1973-1990), com base em raciocínio simples: não poderia crescer para a esquerda, habitat natural de Lagos, seu adversário na primária; tentaria crescer para a direita.

Pela razão inversa, Lavín, autor de um livro de elogios ao modelo econômico aplicado pelo ex-ditador, sofreu processo de “despinochetização”, para angariar votos à esquerda. Passou a ser visto como “traidor” pelos pinochetistas, que fizeram menção de apoiar Zaldívar até que o senador democrata-cristão naufragou na primária.

Bipolarização não quer dizer grande distância entre programas de governo. Ao contrário, o esforço para conquistar o voto do centro e para demonstrar pragmatismo, virtude essencial desta campanha, tornou os dois programas praticamente idênticos, do ponto de vista econômico.

Lagos e Lavín estão igualmente comprometidos com o equilíbrio fiscal. As diferenças são de nuance (ler ao lado).

“É curioso notar que Lagos esteja sendo classificado pela imprensa estrangeira como candidato socialista”, observa o cientista político Guillermo Holzmann, da Universidade do Chile. “Aqui, ele é chamado simplesmente de candidato da Concertación.” Em seus movimentos centrípetos rumo à moderação, nem Lavín quis ser visto como representante da velha direita chilena nem Lagos reivindicou a herança socialista.

O redesenho ideológico e partidário terá profundas conseqüências sobre o sistema político chileno, concordam os analistas. De imediato, a eleição de Lavín significaria a chegada ao poder, pelo voto, de um candidato da direita pela primeira vez desde Jorge Alessandri (1958-64), que, no entanto, declarava-se independente e era tão moderado a ponto de Lagos o ter incluído na “continuidade histórica” de que faz parte.

A vitória de Lagos não representaria apenas o retorno de um líder do PS ao poder, depois da traumática experiência de Salvador Allende (1970-73), interrompida pelo golpe militar liderado por Pinochet.

Culminaria, também, a inversão de papéis entre a DC e o PS no interior da Concertación. Desde a redemocratização, o PS ajudou a sustentar presidentes democrata-cristãos: Patricio Aylwin (1990-1994) e Eduardo Frei (1994-2000).

A votação da DC veio declinando nesta década. No início dos anos 90, ela obtinha entre 28% e 29% dos votos. Nas eleições parlamentares de 1997, teve 21%, enquanto o PS e o Partido pela Democracia (PPD), esquerda moderada, tiveram, somados, 23%. “Quando os dois ultrapassaram a DC, eu previ o seu fim”, lembra Meneses.

Para o cientista político, o declínio da DC é conseqüência natural de dois fenômenos: a “onda de laicização do Chile”, resultante da radical modernização do Estado e abertura do país à globalização, e o fim da guerra fria. Como na Alemanha e na Itália, a DC chilena foi fomentada pelos Estados Unidos como barragem de contenção do comunismo alternativa ao fascismo.

A questão é saber para onde se bandeará a ala direitista da DC, que representa um terço do partido, ou 7% do eleitorado. A RN, que está à esquerda da UDI, seria o destino ideologicamente natural, se não fosse visceralmente anticlerical e nacionalista – traço que a DC repudia. Só os mais à direita da DC poderiam migrar para a ala esquerda da UDI.

A dissidência poderia desfazer a atestada maioria parlamentar de um eventual governo de Lagos. Holzmann é menos fatalista quanto ao destino da DC. “Temos de esperar as eleições parlamentares de dezembro de 2001”, diz o cientista político. “A DC tem até lá para repotencializar-se.” Naquelas eleições, assim como nas que as precedem, as municipais de junho de 2000, Holzmann também chama a atenção para o desempenho do Partido Comunista (PC).

Algumas pesquisas prevêem votação hoje de 6% a quase 7% para a candidata comunista, Gladys Marín. Se isso se concretizar e se repetir nas próximas eleições, diz o analista, o PC “pode surgir como força com capacidade de chantagear os outros partidos”.

 

Consciente da janela de oportunidade que se abre, Marín recusa-se a oferecer seus votos a Lagos, caso haja segundo turno. A eleição presidencial deste domingo no Chile promete ser acirrada, pois, apesar do favoritismo do governista Ricardo Lagos, o oposicionista Joaquín Lavín pode surpreender e virar o jogo. Também a realização de um segundo turno não está descartada. A disputa voto a voto não reflete, porém, um embate ideológico, já que os programas dos candidatos favoritos são iguais, variando apenas na ênfase

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