Guerrilheiros mostram alto nível de ousadia em seqüestros

Rebeldes das Farc chegam a pesquisar declarações de renda de reféns para fixar resgate

 

BOGOTÁ — Numa manhã do ano 2000, guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) invadiram uma fazenda e seqüestraram um casal pertencente a duas famílias multimilionárias. O pai da moça decidiu negociar diretamente com os seqüestradores, dispensando assessoria profissional. Depois de dois meses e meio, pagou o resgate exigido. Mas não entregaram o casal. “Se pagaram tão depressa, é porque podem pagar muito mais”, alegaram os guerrilheiros.

As duas famílias se juntaram e pagaram a nova quantia exigida para soltar os dois reféns. Os seqüestradores liberaram só o marido: “Ela fica, porque a família dela tem mais dinheiro.” Ao ouvir isso, a refém desmaiou. Seu pai vendeu o que tinha: cinco torres de escritório e um jato particular. Pagou US$ 6 milhões para as Farc. Depois de 13 meses, sua filha finalmente foi libertada. Com o marido e os filhos, mudou-se para os EUA.

Numa noite de segunda-feira do ano passado, um primo-irmão dessa ex-refém descansava em sua modesta casa, cujos quartos eram usados como pensão, num sítio em Fusa, 80 quilômetros a sudoeste de Bogotá. Cerca de 20 pessoas entraram e se identificaram como integrantes das Farc.

Procuravam a mãe dele — irmã do empresário que pagara os US$ 6 milhões de resgate, e que pertencia a um ramo pobre da família. Como ela não estava, levaram o filho, que sofria de epilepsia. Em situações normais, ele costumava ter uma convulsão a cada dois meses. Com o estresse e o esforço físico — obrigaram-no a subir um morro —, ele passou a convulsionar em intervalos de duas horas. “Essa merda que pegamos não serve para nada”, disse uma voz feminina, por telefone, à mulher do refém. “Precisamos negociar logo, se não ele morre. Por isso, vamos pedir ‘só’ US$ 100 mil.” A família disse que não tinha essa quantia.

Na manhã de terça-feira, solicitaram que deixassem num local combinado um medicamento de uso exclusivo dos hospitais que era exatamente o indicado para a crise epiléptica do refém. Exigiram US$ 50 mil. A família não tinha. No decorrer da semana, baixaram para US$ 20 mil. Impuseram um mínimo de US$ 10 mil e a sexta-feira como prazo final. “O máximo que podemos conseguir são US$ 5 mil”, respondeu o irmão do refém, que vendeu o carro e pediu o resto emprestado.

Concordaram, com uma condição: que em um mês pagassem os outros US$ 5 mil. O casal deixou o sítio e veio com os filhos viver num apartamento alugado em Bogotá. Os guerrilheiros os localizaram. Foram mudando de apartamento, e sempre eram rastreados. Pediram visto na embaixada americana, apresentando boletins de ocorrência policial que provavam que corriam risco de vida. A embaixada negou o visto, alegando que “qualquer pessoa pode comprar esses papéis por US$ 100”.

Nesse interim, membros da quadrilha foram flagrados dentro de um escritório da Direção de Impostos e Alfândega Nacional, examinando as declarações de imposto de renda de pessoas com o mesmo sobrenome do epiléptico. Esse é um método comum das Farc, que afirmam ter arquivados os dados fiscais de muitos colombianos. Nas “pescas milagrosas” (bloqueios de estrada) mais sofisticadas, os guerrilheiros digitam o número da cédula de identidade dos reféns e verificam no computador exatamente quanto podem exigir.

Recentemente, um homem anunciou nos classificados dois apartamentos para vender ou trocar por um sítio. Apareceram duas mulheres, que se identificaram como mãe e filha, e quiseram olhar os apartamentos. “O sr. tem que ir até Neusa (localidade à beira de um lago perto de Bogotá, onde muitos moradores da capital fazem piqueniques nos fins de semana), para ver nosso sítio e conversar com meu marido”, disse a mais velha.

Quando chegaram ao local, desceu um homem de uma camionete blindada e se apresentou como comandante da frente das Farc na área. “O sr. está seqüestrado. Seu patrimônio está avaliado em US$ 1,5 milhão. Nossa organização exige 10%.” O refém argumentou que era ele quem manejava o dinheiro da família. “Perfeito. O sr. pode ir embora e tem até 17h para nos pagar”, disse o comandante, demonstrando que sabia os locais que sua mulher freqüentava, a escola e os horários de seus filhos.

O refém voltou para Bogotá e contatou a divisão anti-seqüestro da polícia colombiana. Uma hora depois, um agente lhe telefonou de volta: “Esse é mesmo o comandante da frente das Farc em Neusa. O sr. tem duas opções: ou paga o resgate ou deixa o país imediatamente.” O refém negociou com o comandante e conseguiu baixar o resgate para US$ 100 mil.

 

Virtualmente todas as famílias colombianas, da classe alta à classe média baixa, têm histórias como essas — de pessoas que pediram ao Estado para ficar no anonimato e omitir alguns detalhes. Se não ocorreram com parentes, pelo menos com amigos. A ousadia e a certeza da impunidade são tais que os guerrilheiros liberam os reféns para ir atrás do próprio resgate. E a falta de limites os faz transgredir as regras que eles próprios impõem.

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