No santuário da guerrilha, Estado não existe

San Vicente del Caguán, principal cidade da “zona de distensão’ de 42 mil quilômetros quadrados controlada pelas Farc, não tem polícia, Exército nem Justiça, cujas funções são exercidas pelos rebeldes esquerdistas

 

SAN VICENTE DEL CAGUÁN, Colômbia – É com desconcertante delicadeza que os agentes da Polícia Cívica, desarmados e em busca justamente de armas, pedem para revistar a bagagem de quem chega ao aeroporto de San Vicente del Caguán, a principal cidade da “zona de distensão” controlada pela guerrilha. Exclusivamente integrantes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), sejam guerrilheiros fardados ou milicianos à paisana, podem andar armados nessa extensa área de 42 mil quilômetros quadrados do centro-sul da Colômbia, transformada, em novembro, em santuário da guerrilha e cenário das negociações de paz.

Ao sair do aeroporto, a primeira sensação é de desproteção, por saber que não há polícia, Exército ou Justiça – os três órgãos do Estado que, mal ou bem, comumente estão a cargo da segurança pública. Não há Estado. Ele se retirou de San Vicente del Caguán e do restante da zona de distensão como forma de garantir a segurança física do comando das Farc, em suas negociações com o governo. E só a guerrilha parece garantida.

Sob o calor úmido do extremo ocidente da Amazônia colombiana, no meio da tarde de sábado, a insistência dos motoristas de táxi em recrutar passageiros, comum em qualquer aeroporto, inspira desconfiança e receio no recém-chegado, empenhado em não entrar no carro errado, no único lugar da Colômbia onde os desaparecimentos ainda chamam a atenção, por sua inédita freqüência.

Quando outros três homens sobem no mesmo táxi e o carro dispara com velocidade incompatível com a rua de terra, o seqüestro parece fato consumado. Engano. O táxi funciona como lotação e seu motorista, Pancho, faz ponto em frente ao escritório da Satena, a linha aérea regional que faz Bogotá-San Vicente, em uma hora e meia, com escala em Neiva, ainda fora da zona de distensão.

No burburinho da rua principal da cidade de 22 mil habitantes (de um total de 90 mil na zona de distensão), a sensação de insegurança dissipa-se rapidamente, à primeira visão de uma patrulha da guerrilha. Dois rapazes na faixa dos 18 anos, armados de fuzis, seguem placidamente pela calçada da Rua do Comércio. Abordados, demonstram tranqüilidade e uma ponta de simpatia comum aos colombianos, aficionados por futebol, quando encontram um brasileiro.

Além das irregulares patrulhas, a presença da guerrilha uniformizada está nas barreiras montadas nos três acessos a San Vicente – para examinar documentos e revistar carros, em busca de armas e qualquer outro sinal que lhe pareça suspeito.

Entardece e aumenta a sensação, não de normalidade, mas de calma, no primeiro encontro com o miliciano Juan Pablo, que faz o enlace entre a imprensa e o comandante Raúl Reyes, porta-voz das Farc, acampado na Machaca, região montanhosa a três horas de carro de San Vicente. Juan Pablo circunda a Praça da Matriz, dirigindo um sedã vinho, com outro miliciano ao lado, munido de um rádio com uma longa antena, e, no banco de trás, os dois guerrilheiros que patrulhavam a Rua do Comércio mais cedo.

Juan Pablo é um típico quadro de alto nível. Já morou na Itália, fala inglês e francês. Mas o ar intelectual e afável contrasta um pouco com a pistola automática na cintura. Juan Pablo ouve queixas dos moradores e participa das reuniões com o prefeito e com as lideranças da comunidade. Como autoridade de fato, a guerrilha impõe regras sobre as administrações dos cinco municípios da zona de distensão.

Por exemplo, firmou um “convênio” com os caminhoneiros e a prefeitura, para melhorar as ruas e estradas. A cada vez que um caminhão sai carregado da cidade, deve oferecer uma viagem de graça, trazendo um carregamento de cascalho ou de asfalto de duas minas do governo a 40 minutos de San Vicente. A prefeitura oferece o combustível. As Farc entram com a fiscalização, nas barreiras em volta da cidade. As melhorias começam a ser notadas. Foi sob a gestão das Farc que a estrada que leva à Machaca se tornou transitável, por exemplo. “O município está mais bem cuidado”, testemunha o motorista Alírio.

A prefeitura continua arrecadando os impostos legais. As Farc cobram a tradicional “vacina” dos comerciantes, pecuaristas, madeireiros e produtores de coca da região. Antes da “desmilitarização”, essa cobrança, assim como a própria presença guerrilheira na região, era objeto de disputa com o Exército e a polícia. Hoje, uma e outra coisa estão institucionalizadas em toda a área.

A Justiça também deixou a zona, para evitar o conflito institucional óbvio de exercer jurisdição sobre uma área controlada por pessoas que, tecnicamente, estão à margem da lei. Os juízes e procuradores foram substituídos por milicianos das Farc, que administram a justiça a seu modo. Sentados a pequenas mesas, em tendas improvisadas, com as indefectíveis pistolas na cintura, eles ouvem as desavenças e dão seu veredicto, às vezes contrariando decisões anteriores da Justiça.

Há o caso de um “juiz” das Farc que decidiu que um cidadão que tinha uma dívida para com outro, que por sua vez devia para um terceiro, devia pagá-la diretamente para esse último, sem exigir que seu verdadeiro credor lhe entregasse a promissória por ele firmada. Outro deliberou que uma mulher podia continuar vivendo com o amante, mas devia devolver ao marido abandonado todos os eletrodomésticos e utensílios que levara consigo para a casa do amante.

 

Satisfeitos ou não, os litigantes devem acatar as decisões da justiça revolucionária. Não há instância superior.

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