País viveu queda-de-braço entre Estado e narcoterror

Pressão dos EUA levou governo a enfrentar cartéis, que reagiram com série de ataques a juízes e políticos

 

MEDELLÍN

Existe um precedente, na história recente da América do Sul, de uma queda-de-braço entre o Estado e criminosos presos. Tem todos os ingredientes da que se viveu em São Paulo: pressões por privilégios no cárcere, acordos que deram início a períodos de paz, intercalados por recrudescimentos e violência contra as autoridades e contra a população. Seu desenlace não é alentador.

Até o início dos anos 80, o narcotráfico era socialmente aceito na Colômbia, mais ou menos como o jogo do bicho no Brasil. Filhos de narcotraficantes freqüentavam as melhores escolas, e conviviam no meio de famílias prósperas de outros ramos da economia. Foram a pressão do governo Ronald Reagan, determinado a secar a fonte de 80% da cocaína que chegava aos EUA, e a indignação de setores da elite, que motivaram uma reação.

Desde 1979, a Colômbia tinha um tratado de extradição com os Estados Unidos. Nunca posto em prática. Em 1984, o então ministro da Justiça Rodrigo Lara Bonilla decidiu tirá-lo da gaveta. Pragmaticamente falando, era a única forma de constranger efetivamente os narcotraficantes, que tinham a Justiça nas mãos, por um misto de corrupção e intimidação: os juízes que não se deixavam comprar morriam.

Lara caiu com 11 tiros, perto de sua casa, em Bogotá, pouco depois de anunciar que os chefes do tráfico presos seriam transferidos para presídios militares – de onde não poderiam mais comandar o crime organizado, como faziam das cadeias comuns – e estariam depois sujeitos a serem extraditados para os EUA. Nascia o narcoterrorismo na Colômbia. O presidente Belisario Betancur decretou estado de sítio. 

Entretanto, as instituições continuaram a titubear, alternando acessos de fúria repressora com gestos de delicadeza para com os criminosos. Até que, em 1988, o governo Reagan impôs sanções comerciais e consulares contra a Colômbia, depois que um juiz mandou soltar Jorge Luis Ochoa, um dos chefes do Cartel de Medellín. O presidente Virgilio Barco reagiu imediatamente, prometendo prender e extraditar Ochoa e os outros quatro integrantes da cúpula do cartel: dois irmãos seus, Pablo Escobar e José González, o Mexicano.

Surgiram então Os Extraditáveis, o braço terrorista do narcotráfico, que declarou, agora sim, “guerra total” ao Estado colombiano. Dezenas de policiais, juízes, políticos e pessoas comuns foram mortas nos meses que se seguiram, em atentados a bomba e a tiros que converteram a Colômbia numa espécie (à época) de Líbano latino.

Em julho de 1989, a média era de 47 assassinatos por dia. Entre agosto de 1989 e junho de 1990, foram 283 atentados, com 272 mortos e prejuízos de US$ 300 milhões. Várias autoridades foram mortas, incluindo o procurador-geral Carlos Hoyos, e outras tiveram de renunciar e deixar o país, como a ministra da Justiça, Mónica de Greiff. Criou-se a figura dos “juízes invisíveis”, que se escondiam para não morrer. 

Os narcotraficantes assassinavam os candidatos dos quais não gostavam e inundavam de dinheiro as campanhas dos que não os importunavam, numa macabra seleção natural que transformou a Colômbia numa “narcodemocracia”. Acuados, pressionados pelos EUA mas também pela opinião pública – que oscilava entre a indignação e a exaustão, ora exigindo firmeza, ora pedindo arrego a qualquer custo -, as autoridades negociavam secretamente com os criminosos, desistindo de extradições na última hora, oferecendo benesses nas prisões, fechando os olhos para fugas pela porta da frente.

Até que, em 19 de junho de 1991, a Colômbia capitulou. Atendendo a exigência do Cartel de Medellín, uma assembléia constituinte incluiu na Constituição a proibição da extradição de cidadãos colombianos. Horas depois da votação, Pablo Escobar se “entregou” (modo de dizer) segundo suas próprias condições. O chefe supremo do cartel se encerrou, junto com oito colaboradores, numa fortaleza construída em local por ele escolhido, e com seu dinheiro, guardada não para que eles não fugissem, mas para protegê-los de seus muitos inimigos. 

No complexo, apelidado de La Catedral, 6,5 quilômetros montanha acima, em Envigado, ao sul de Medellín, dispunham de paisagens espetaculares, campo de futebol, cachoeira para refrescar-se depois das extenuantes partidas, salão de jogos, televisor de 60 polegadas, colchão de água, radio-transmissores, aparelhos de som, armas e munição e até uma sala de bonecas para a filha de seis anos de Escobar brincar, quando fosse visitar o pai. Escobar ficou um ano assim. 

Quando a imprensa revelou o luxo em que o chefão do tráfico vivia, o humor da opinião pública oscilou mais uma vez e o governo do presidente César Gaviria anunciou, em julho de 1992, que o transferiria para uma prisão militar. Foi a senha para Escobar e seus comparsas fugirem. Teve início uma caçada de um ano e meio, que terminou com a morte de Escobar, em dezembro de 1993. Hoje, La Catedral está reduzida a escombros. Os moradores da região saquearam tudo. A montanha se converteu num condomínio de casas de fim-de-semana, cujos lotes valem 300 milhões de pesos (R$ 300 mil).

 

Mas a Colômbia ainda paga o preço de sua leniência, de suas concessões, de seus períodos de “paz” com o crime organizado, durante os quais ele cresceu em força militar, ousadia e uma auto-imagem de legitimidade. Na fase do narcoterrorismo teve início a aliança dos cartéis com a guerrilha, que lhes passou a vender proteção. Ao longo dos anos 90, os cartéis foram desbaratados. Mas em seu lugar se consolidou a narcoguerrilha. Estruturada de forma militar e financiada pelo narcotráfico, ela desafia até hoje a autoridade do Estado colombiano.

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