‘Queremos governo pluralista e democrático’

Em entrevista exclusiva ao ‘Estado’, o líder guerrilheiro Raúl Reyes diz ser preciso adaptar o marxismo/ Arquivo pessoal

SAN VICENTE DEL CAGUÁN, Colômbia – As Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia querem chegar ao poder para estabelecer um regime socialista, porém democrático. Foi o que disse o comandante Raúl Reyes, porta-voz das Farc, em entrevista exclusiva ao Estado, numa fazenda em La Machaca, a três horas de carro de San Vicente. Reyes defendeu a cobrança de “impostos”, inclusive sobre o narcotráfico.

Estado – Qual é o projeto das Farc para o país?

Raúl Reyes – Um governo pluralista, patriótico e democrático. Defendemos uma reforma agrária integral, resolver o problema do desemprego, de moradia, saúde e da dívida externa. Também propomos um Exército menor, que se ocupe das fronteiras, para um país que não vai estar em guerra, que não seja de ocupação e muito menos, como agora, esteja, em nome dos paramilitares, torturando e assassinando e fazendo desaparecer as pessoas.

Estado – É um projeto democrático, no sentido clássico, com eleições?

Reyes – Sim, claro. A idéia é que participem todos os setores que queiram contribuir com uma Colômbia diferente. E é o que vimos conversando com o governo atual.

Estado – As Farc se converteriam em partido político, no futuro?

Reyes – Não, as Farc são um partido político, uma organização político-militar. Todas as ações que as Farc realizam são de caráter político. E por isso nós insistimos no diálogo, porque não pensamos que as soluções para o país só se possam buscar pela guerra.

Estado – Como definir as Farc ideologicamente?

Reyes – São uma organização regida pelo pensamento marxista-leninista. Acontece que os tempos mudam e o marxismo-leninismo tem absoluta vigência como ciência, ideologia, mas é preciso tê-lo, não como um dogma, mas como um guia. É preciso acondicioná-lo às realidades históricas da Colômbia e do mundo. Temos de lutar por um governo socialista na Colômbia, mas não pode ser um socialismo como esse que foi derrubado na União Soviética nem como o que existe hoje na China, em Cuba e no Vietnã. Não temos o direito de repetir erros deles. É preciso ver o que fizeram de bom, talvez na parte da saúde, da educação e da ciência.

Estado – As Farc têm como meta assumir o poder do Estado?

Reyes – O objetivo das Farc é a luta pelo poder político, para governar. Mas as Farc não estão pensando em governar sozinhas, mas com milhões de colombianos que estejam interessados em sentar e conversar sobre a Colômbia que queremos para o século vindouro; sem excluir ninguém. As Farc não estão propondo sequer a expropriação de capital, mas a distribuição equitativa dos recursos, da riqueza.

Estado – Como?

Reyes – Por exemplo, uma empresa multinacional que tenha aqui US$ 5 bilhões investidos: não nos opomos a que tenha muitos lucros. Mas, por que não entregar a esse novo governo a metade desses recursos para investimentos sociais?

Estado – Vocês reestatizariam as empresas que foram privatizadas?

Reyes – Obviamente, isso é uma negociação. Se um empresário disser: “não posso comprometer-me com as novas leis”, será necessário persuadi-lo de que é melhor investir e produzir.

Estado – E o narcotráfico?

Reyes – É um problema muito grave, que corresponde às desigualdades sociais, às deformações e à própria crise do sistema capitalista. As pessoas que cultivam coca nos campos não são mafiosas, mas trabalhadores da terra. Então, o fenômeno do narcotráfico não se pode resolver pela força, mas deve ter uma solução política, econômica e social. Porque a abertura econômica acabou com tudo. Neste momento, é mais negócio para o governo trazer arroz do Equador do que produzi-lo aqui na Colômbia. A carne argentina ou venezuelana também é muito mais barata.

Estado – Vocês defendem proteger mais…

Reyes – Claro, maior proteção à produção nacional. Os exportadores de veículos e eletrodomésticos que não estavam envolvidos com o narcotráfico quebraram. Não podem competir com os narcotraficantes, que enviam grande quantidade de cocaína ou heroína para Miami ou Europa e de lá para cá trazem seus dólares convertidos em veículos, em maquinário agrícola, em eletrodomésticos, etc.

Estado – As barreiras e a “pesca milagrosa” que são atribuídas à guerrilha têm vinculação com as Farc?

Reyes – Nossa guerrilha monta barreiras nos arredores de qualquer cidade para provocar a movimentação da tropa ou da polícia, para combatê-las, e também para capturar os paramilitares e os que os financiam.

Estado – O seqüestro não é uma fonte de renda para as Farc?

Reyes – As Farc têm como política não seqüestrar. O que as Farc cobram é um imposto para a paz. Depois que o presidente (César) Gaviria (1990-94) estabeleceu o imposto para a guerra, as Farc começaram a cobrar também um imposto para a paz. Há na Colômbia muita gente que paga esse imposto sem necessidade de pressioná-la. Já outros, não. Fazem tudo para não pagar. São os sonegadores. Quando o Estado consegue capturar os sonegadores, os prende. As Farc não têm prisões. Então, detêm os sonegadores até que paguem os impostos – e uma multa por não haver pago o imposto a tempo.

Estado – Qual é a relação entre as Farc e o narcotráfico?

Reyes – Nenhuma. As Farc cobram o imposto para a paz de todos os empresários. Não averiguamos se são narcotraficantes ou não, porque hoje, na Colômbia, é tamanha a presença do dinheiro do narcotráfico que está na indústria, na agricultura, no comércio, nos meios de comunicação, no ensino, em toda parte.

Estado – O domínio territorial é objetivo das Farc?

Reyes – Não, o objetivo das Farc é tomar o poder. E têm presença em todo o país. Mas, no dia em que o diálogo se romper, que o governo não quiser continuar dialogando, nós devolveremos este território e seguiremos como estávamos antes. Antes da desmilitarização, permanecíamos por tudo isso (mostra a área). Só entrávamos na cidade à paisana, para meter chumbo no Exército, e depois saíamos.

Estado – Muita gente acha que a guerrilha se tornou um negócio. Se vocês forem concorrer em eleições, não terão problemas de imagem?

Reyes – O que é pior: ser impopular ou morrer?

Estado – Vocês estão cansados de lutar?

Reyes – Não, de morrer.

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