Gutiérrez, um recluso em Brasília

Ex-presidente do Equador obedece às rígidas leis de asilo, desmente briga com a mulher e acompanha de longe cúpula na capital

 

BRASÍLIA – Os chefes de Estado sul-americanos e árabes protagonizaram na terça-feira um encontro de enorme visibilidade, no Centro de Convenções de Brasília. A apenas 3 quilômetros de distância, um homem observava em silêncio. Sua ausência era um desses caprichos da história. Se a Cúpula América do Sul – Países Árabes tivesse sido três semanas antes, Lucio Gutiérrez estaria entre os colegas, provavelmente numa posição de destaque, considerando os laços de amizade que o unem ao anfitrião, Luiz Inácio Lula da Silva. 

Como se sentiu o presidente deposto do Equador, acompanhando a cúpula de seu quarto no austero e pacato Hotel de Trânsito do Exército, isolado no Setor Militar Urbano de Brasília? “Así es la vida”, reage apenas Gutiérrez, as emoções represadas com o treino profissional de coronel da reserva. 

Segundo as normas do asilo político, Gutiérrez não pode conceder entrevistas. Na manhã ensolarada de quinta-feira, vestindo camisa branca com xadrez rosa de mangas compridas, calça jeans e sapatos pretos, concordou em receber o repórter do Estado para ouvir a gravação de uma entrevista feita com sua filha, também ela residente numa unidade do Exército, a Escola Superior Militar Eloy Alfaro, em Quito. (Entre o Exército e o exílio no Brasil, Karina escolhe o primeiro – 27/4/2005)

Depois de sua atribulada passagem de 28 meses pelo Palácio Carondolet, e das aflitivas 87 horas de confinamento na residência do embaixador brasileiro em Quito, enquanto Brasil e Equador discutiam seu destino, Gutiérrez agora tem de preencher o tempo. Sua principal atividade: está escrevendo um relatório para a Organização das Nações Unidas e para a Organização dos Estados Americanos sobre a sua destituição pelo Congresso equatoriano, no dia 20. 

“Foram ouvir o outro governo, mas ninguém veio me ouvir”, diz ele. “Não tem problema, não é?”, pergunta o ex-presidente, que teve de dar explicações ao embaixador Sérgio Florencio quando estava na residência, por ter conversado pelo telefone com uma amiga, que tratou de gravar e difundir suas declarações, numa quebra da norma do silêncio. 

Primeiro colocado da turma de 1979 na Escola de Educação Física do Exército, na Urca (Rio), Gutiérrez, de 48 anos dissimulados sob a pele morena e os cabelos pretos, começa o dia correndo e nadando no Clube Militar anexo ao hotel. Uma austera construção de 1970, o hotel tem apenas 31 apartamentos, cujas diárias oscilam de R$ 90 a R$ 110 – neste caso, custeadas pelo governo brasileiro. 

De vez em quando, Gutiérrez sai no carro da Polícia Federal com os dois agentes que o protegem 24 horas por dia, para providenciar os documentos de sua permanência definitiva no Brasil. “O pessoal da PF tem quebrado o galho”, elogia, agradecido, ensaiando uma nova gíria em português. O coronel também sai para visitar os amigos em Brasília que fez nos tempos da Educação Física na Urca – oficiais das três Armas, policiais, bombeiros e até um assessor do Senado. 

Gutiérrez desmente a versão que circulou em Quito, de que sua mulher, Ximena, teria renunciado ao asilo e voltado ao Equador, na semana passada, com a filha Viviana, depois de ter apanhado do marido. “La gente es muy mala”, diz ele, e descreve em detalhes o problema ginecológico – e não a suposta surra – que levou sua mulher, médica e deputada, duas vezes ao Hospital de Base. “Ainda bem que ficou registrado no prontuário do hospital.” 

Ximena e Viviana voltaram, conta ele, porque a menina de 15 anos sentiu falta da irmã Karina, de 20 (que seguiu o curso de cadete em Quito), dos amigos, enfim, de sua vida de adolescente no Equador. Diante do desejo de Viviana, o casal decidiu que mãe e filha deviam voltar imediatamente, para Ximena fazer uma cirurgia e para a menina não perder mais aulas. “Elas virão nas férias.” 

 

Depois de concluir o relatório para a ONU e a OEA, Gutiérrez, que conversou com Lula apenas uma vez depois de sua queda, pelo telefone da residência do embaixador, pretende procurar o amigo presidente. “Ele esteve muito ocupado ultimamente, com a cúpula.” Em seus planos está também escrever um livro de memórias, estabelecer-se em alguma cidade do Brasil – não sabe ainda se em Brasília mesmo – e “procurar alguma coisa para fazer”. Para ajudar no sustento, ele espera contar com suas aposentadorias de coronel e de ex-presidente. “Têm que chegar aqui.”

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