Peru sente necessidade de mudança profunda, afirma líder da transição

Em entrevista ao ‘Estado’, Paniagua destaca que entrega um país renascido a Toledo

O presidente Valentín Paniagua, em entrevista ao Estado no Palácio do Governo 

LIMA — No extraordinário tumulto que se seguiu à eleição de Alberto Fujimori em junho do ano passado, até a sua fuga espetacular, em novembro, o Peru contou com um lance de sorte. No lugar certo e na hora certa, estava o homem certo – é a visão unânime no país. O congressista Valentín Paniagua era o próximo na linha sucessória quase por acaso, como presidente do Congresso, depois que outros tinham renunciado ou sido destituídos desse cargo e dos de vice-presidente da República, que são dois no Peru.

Esse advogado constitucionalista de 64 anos, eleito deputado pela primeira vez aos 26, pelo mesmo partido que integra até hoje, o Ação Popular — para se tornar em seguida o ministro da Justiça mais jovem da história do Peru, no primeiro governo de Fernando Belaúnde Terry (1963-68) —, entendeu a gravidade do momento e a missão do governo transitório. Livre de compromissos políticos, convocou seus colegas professores universitários e profissionais de cada área e formou um governo técnico, uma espécie de república de Platão moderna, em que os acadêmicos tomaram o lugar dos políticos.

Paniagua promoveu a transparência e a prestação de contas do governo, publicando na Internet dados confiáveis e acessíveis e conjurando dez anos de estatísticas manipuladas e de apropriação do Estado por uma pequena casta mafiosa. E criou as condições para a realização de eleições limpas, depois do processo crivado de suspeitas de fraude do ano anterior. Oito meses depois, Paniagua entrega o governo gozando da gratidão e simpatia dos peruanos. Entre seus últimos atos como presidente, Paniagua concedeu entrevista exclusiva ao Estado no Palácio do Governo. A seguir, trechos da entrevista.

Estado – Como o sr. compara o país que recebeu com o país que entrega?

Paniagua – O Peru de novembro de 2000 era um país sem esperança e desanimado. Hoje, renasce para seus ideais e melhores ilusões e sente a necessidade de uma mudança profunda. Vivemos um amanhecer, um momento fundacional. Terminou a república autocrática, com suas seqüelas de corrupção e arbitrariedade e nasce, por decisão espontânea e coletiva, a república genuinamente democrática.

Estado – Aquela foi a herança mais imediata do governo Fujimori, mas, fazendo um balanço mais amplo, não houve também coisas boas, como a derrota da hiperinflação e do terrorismo?

Paniagua – Prefiro olhar a realidade final que deixou o regime: uma economia em recessão, um país em crise, desemprego recorde e a instalação no poder de uma máquina de corrupção que destruiu as instituições e finalmente desconheceu a vontade popular. Esse não é um juízo mesquinho, que quer ignorar realizações, mas os homens e regimes se julgam não pelo que fazem transitoriamente, mas pela herança que deixam. Creio que a hipoteca de miséria, frustração e corrupção que deixou esse governo impede ver os seus êxitos. Alguns deles, entretanto, é preciso apreciar em seu devido contexto.

Por exemplo, na década de 80, todos os países latino-americanos tinham inflação (alta), e na de 90, nenhum tem. O controle da inflação não foi um acerto do regime anterior, mas o fruto de fenômenos internacionais que estão além do alcance do governo. A liquidação do terrorismo, também não, mas fruto de uma longa luta desde 18 de maio de 1980 (data do fim da ditadura militar). Igualmente, na década de 80, outros países latino-americanos tiveram fenômenos de violência, que na de 90 desapareceram na maioria deles. Houve também fatores internacionais que beneficiaram essa luta, entre outros, a queda do Muro de Berlim, que destruiu a conexão entre esses movimentos e o comunismo internacional.

Estado – Em que medida as corporações das Forças Armadas e da polícia estão inquietas com o processo de depuração e acomodadas ao novo papel que a democracia lhes reserva?

Paniagua – É provável que eu seja otimista, mas as Forças Armadas estão formadas por simples cidadãos peruanos, que sentem, como os demais, a necessidade de mudança, que sofreram, como os outros, com a autocracia e com a corrupção, e, portanto, desejam sinceramente afirmar os valores e reivindicar suas próprias instituições, que foram as primeiras vítimas da autocracia. Portanto, não há nenhuma razão para não supor que os jovens oficiais estão decididos a colaborar para a formação do Estado de Direito.

Estado – Em 15 anos, o Peru teve dois governos que, apesar de muito diferentes, tinham em comum o gosto por mudanças bruscas e soluções milagrosas. Depois veio o seu governo, que foi o contrário disso: racional, técnico e sereno. Como Toledo se encaixa nesse processo e quais a expectativas dos peruanos, depois de tantas rupturas e desilusões?

Paniagua – Alejandro Toledo é o personagem central da mudança e pode encabeçar legitimamente o processo. Porque liderou as forças democráticas de oposição na resistência ao fujimorismo. E, se bem que não desde o início, mas nas etapas finais desse processo, contou com o respaldo de todas as forças políticas. Há exatamente um ano, a Marcha dos Quatro Suyos (referência incaica aos pontos cardeais) convocou todos os setores políticos do país, liderados por Toledo. Na campanha eleitoral, surgiram outras candidaturas, mas todas expressavam as aspirações que nos uniram no propósito de afirmar o sistema democrático, renovar as instituições e moralizar o país.

Estado – Quais são seus planos para o futuro e como o sr. pode aproveitar a popularidade com que deixa a presidência?

Paniagua – Sou um militante do partido e farei o que ele julgar conveniente.

Mas não tenho outra aspiração senão voltar a ser o que sempre fui e exercer as mesmas atividades com as quais tenho podido, modestamente, contribuir para a construção das instituições democráticas do Peru: o ensino e o exercício da advocacia. Não tenho, como não tive no passado, nenhuma aspiração política, porque sei que uma coisa é chegar à presidência como conseqüência de circunstâncias aleatórias e especialíssimas, como as de novembro do ano passado, e outra, muito distinta, fazê-lo dentro de um processo eleitoral.

 

Conheço perfeitamente minhas limitações e, enquanto tiver o vigor necessário, seguirei lutando pela liberdade e pela democracia, como fiz ao longo de toda minha vida, mas essa determinação pessoal não está associada necessariamente à busca novamente do poder.

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