Chávez defende “integração integral”

Quando não se respeitam as instituições, predomina a lei das selvas. Com essa citação de seu mentor político e intelectual, Simón Bolívar, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez


saiu ontem em defesa de sua iniciativa de promulgar nova Constituição para mudar o sistema eleitoral, reformar o Judiciário, estender seu mandato de cinco para dez anos e consolidar a ampliação dos poderes presidenciais. Chávez já havia procurado executar esse plano em 1992, numa tentativa frustrada de insurreição militar, quando era tenente-coronel do Exército.

Para quem acha que há uma certa contradição entre a defesa das instituições e o modus operandi de Chávez, o presidente venezuelano apresentou, em entrevista coletiva no Parlamento Latino-Americano, em São Paulo, um arsenal de argumentos. “Nosso projeto é eminentemente democrático”, começou Chávez.

“O sistema democrático venezuelano foi-se degenerando até perder sua essência ética e hoje estamos no caos.” Para o presidente, nas eleições de dezembro, “o povo de Simón Bolívar votou pela revolução bolivariana com nome e sobrenome: Assembléia Constituinte”. Um movimento “de baixo para cima, contra o status quo”.

A abstenção de 60% no referendo de abril, que aprovou, por 91% dos votos, a convocação da Constituinte, não impressionou o presidente. Segundo ele, essa tem sido a média, não só na Venezuela, que registrou o mesmo índice nas eleições de novembro, mas em outros países. Para Chávez, o comparecimento foi relativamente alto, considerando que não houve campanha e “vários setores sabotaram o referendo, não informando sobre ele ou fazendo desaparecerem listas e atas de votação”.

Nas eleições para a Constituinte, em julho, Chávez prevê participação bem maior, pois a campanha “já começou”, com entusiasmo expressivo das mulheres e até de minorias como os gays. Os índios já elegeram seus três representantes, com “seus métodos próprios, na selva”.

Chávez só não tira Bolívar da cabeça. À mesa de jantar de sua casa, há sempre uma cadeira vaga, reservada para o “libertador da América” do século 19. No Memorial da América Latina, ele depositou flores no monumento de Bolívar, “símbolo da Pátria grande”, sem demonstrar ter-se dado conta de que ele foi inaugurado em 1991 por seu arquiinimigo, o ex-presidente venezuelano Carlos Andrés Péres, que tentou derrubar. Impassível e sorridente, saiu perguntando em portunhol aos meninos brasileiros que o cercavam se jogavam “fútbol”.

Mas, para efeitos do processo de integração latino-americano, até onde vai o bolivarianismo de Chávez?, perguntou-lhe o Estado. Definindo-se “bolivariano até os ossos”, o presidente venezuelano respondeu que “a integração deve ir muito além do econômico, chegando ao cultural, ao social e ao político”. Uma “integração integral”, resumiu ele – ciente da redundância -, que culmine numa federação de Estados ou numa Comunidade das Nações da América Latina e do Caribe: “Teremos de discutir os mecanismos.”

Mais concretamente, Chávez disse que quer impulsionar a integração entre a Comunidade Andina (que reúne Venezuela, Colômbia, Peru, Equador e Bolívia) e o Mercosul. O Brasil, aliás, conta com isso, como disse ao Estado o ministro das Relações Exteriores, Luiz Felipe Lampreia, em entrevista publicada na quinta-feira.

Segundo o presidente venezuelano, “as negociações vêm-se freando perigosamente, por um fenômeno de subordinação da vontade política à razão técnica”. Chávez filosofou: “A razão econômica é que tem de submeter-se à vontade política.” Assim, “se o processo seguir entravado, a Venezuela vai se associar sozinha ao Mercosul.”

Mais concretamente ainda, Chávez revelou que, no encontro de quinta-feira com o presidente Fernando Henrique Cardoso, em Brasília, os dois avançaram no tema da criação da Petroamérica – um projeto de associação entre Petroleos de Venezuela, Petrobrás e outras estatais latino-americanas do setor. “Recebemos de Cardoso a maior disposição para com a idéia”, afirmou Chávez, que já falou sobre o assunto com o presidente Andrés Pastrana, da Colômbia, e falará com o do México, Ernesto Zedillo.

Esse projeto foi lançado em 1995 e não andou até agora. Assim como no caso da integração com o Mercosul, Chávez manifestou “vontade firme de avançar” nele. Para argumentar em favor dos benefícios de uma coordenação latino-americana na área petrolífera, o presidente venezuelano mencionou a estratégia bem-sucedida da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) em elevar o preço do barril de petróleo, de US$ 7, em dezembro, para US$ 14. “Mas não deve subir mais.”

Como outro exemplo de iniciativa concreta de integração, Chávez citou projeto de interligação de vias fluviais, envolvendo o Delta do Orinoco, que deságua no Caribe, e os rios Amazonas e da Prata. “Seria a integração de todo o continente”, enfatizou. Ainda nessa área dos transportes, o presidente da Câmara Venezuelana-Brasileira de Comércio, José Franciso Marcondes, lembrou a inauguração, em setembro, do último trecho asfaltado da BR-174, que liga Manaus à fronteira com a Venezuela.

Segundo Marcondes, a rodovia está causando aumento no comércio de fronteira, o que, juntamente com a elevação do preço do petróleo, contribuirá com o déficit brasileiro nas transações com a Venezuela. Por outro lado, de acordo com Marcondes, incentivos à exportação de produtos da indústria metal-mecânica e agrícolas, ao fornecimento de tecnologia na área de controle ambiental e ao turismo devem contrabalançar dessa tendência, assim como uma definição sobre a associação com o Mercosul, que deve sair até o fim do ano. Em 1998, o déficit brasileiro foi de US$ 600 milhões, para um fluxo total de US$ 1,8 bilhão. A meta, para este ano, é de um fluxo de US$ 2,8 bilhões.

Em contraste com a imagem de nacionalista reacionário construída em torno de Chávez, o presidente impressiona pelo pragmatismo, quando fala de economia.

Em resposta à pergunta sobre como pretendia combater a recessão venezuelana, que dura 20 anos e foi de 3% no ano passado, Chávez fez desfilar uma série de números – e de iniciativas para atrair nada menos do que o capital externo.

Segundo o presidente, num cenário em que 80% da população está abaixo da linha da pobreza, foi concedido, no 1° de maio, aumento de 20% no salário mínimo, que passou a 120 mil bolívares (R$ 345). Entretanto, embora cerca de um terço da população venezuelana seja composto de funcionários públicos, o orçamento foi reduzido em 10% e Chávez garante que vai baixar o déficit público – de 8%, em 1998, para 4%, este ano. A inflação foi de 30% no ano passado; a meta para este ano é de 20% e, para o ano que vem, de 10%. Em março e abril, a inflação bateu sucessivos recordes de queda em dez anos: 1,2% e 1,1%, respectivamente.

De acordo com Chávez, os capitais estrangeiros estão retornando e as reservas internacionais, subindo. Desde que ele assumiu, em fevereiro, o fator de risco do país caiu de 1.100 para 735 pontos. “Os títulos venezuelanos são os mais procurados do mundo”, orgulhou-se o presidente. “E a Bolsa está batendo recordes de alta.” Nesses três meses, os juros bancários caíram de mais de 50% para menos de 30% ao ano. Respondendo à pergunta: a meta, em relação ao crescimento do PIB, para este ano, é de zero e, para o ano que vem, de 2%.

 

Para arrematar, Chávez lembrou seus périplos pela América Latina, Europa e Canadá, em busca de investimentos e comércio. Dos canadenses, já obteve a reativação de “um dos maiores complexos mineiros do mundo”, em Las Claritas, que criará 3 mil empregos diretos e foi reinaugurado domingo. O presidente também diz estar atraindo investimentos externos para o setor hoteleiro e outros. Chávez pode ser nacionalista. Mas não ignora que exista uma coisa chamada globalização.

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