O teatro do absurdo venezuelano

VENEZUELA: manifestantes e policiais se encontram na “mãe de todas as marchas” realizada nesta semana / Christian Veron/ Reuters

A população sai às ruas para pedir democracia, acesso aos bens essenciais e segurança. O governo convoca os chavistas para “contramarchas”. Os confrontos resultantes abrem caminho para a repressão policial e execuções sumárias nas ruas. A oposição é responsabilizada pelas mortes. Detenções em massa aumentam o número de presos políticos. Nessa quarta-feira, em que dezenas de milhares de pessoas saíram às ruas em todo o país, foram dois manifestantes e um sargento mortos, e 270 detidos.

Há vários anos que o mesmo roteiro vem sendo reencenado na Venezuela. A repetição dos métodos dá a impressão de que o país está andando em círculos. Mas a melhor imagem é a de uma espiral, uma escalada na qual as pautas da oposição vão se amontoando, enquanto o chavismo vai estendendo cada vez mais os seus tentáculos, num sufocamento que poderá conduzir a uma implosão.

Quando, em fevereiro de 2014, a oposição convocou manifestações pacíficas contra a escassez de alimentos, remédios e produtos de higiene, a inflação e a criminalidade altas, a ação de agentes chavistas à paisana, munidos de pistolas, rádio-comunicadores e motocicletas, combinada com a de franco-atiradores, levou a 43 mortes e 4 mil detenções. Incluindo a do líder oposicionista Leopoldo López, responsabilizado pela violência e condenado a quase 14 anos de prisão.

O número crescente de presos políticos — segundo a entidade Foro Penal Venezuelano, são hoje 144 — entrou na pauta das manifestações, juntamente com a decisão do Conselho Nacional Eleitoral de não permitir a realização do referendo revogatório do mandato do presidente Nicolás Maduro no ano passado; o cancelamento das eleições estaduais de dezembro; o fechamento em março da Assembleia Nacional, de maioria oposicionista, pelo Tribunal Supremo de Justiça (do qual o regime recuou em seguida).

A espiral deu nova volta na segunda-feira, quando Maduro recebeu milhares de milicianos chavistas uniformizados (membros remunerados dos “coletivos” criados pelo governo) no Palácio de Miraflores. O presidente anunciou que ampliará de 100 mil para 500 mil o efetivo das milícias, e que as Forças Armadas Revolucionárias Bolivarianas lhes fornecerão armas.

“Um fuzil para cada miliciano, estão aprovados os recursos”, anunciou o presidente. “Na logística, para articular as Zodis (Zonas Operativas de Defesa Integral) e as Redis (Regiões de Defesa Integral).” A intenção de articular as milícias com essas estruturas regionais é sintomática: em relatório no mês passado, a consultoria de análise de risco Stratfor sustentou que o governo havia aumentado a vigilância sobre os militares de patentes intermediárias dessas unidades, num sinal de dúvida sobre sua lealdade ao regime.

“Para que estejam os milicianos dos campos, das universidades, da classe operária, para conseguir um sistema organizado de logística, garantir sua mobilização permanente, sua habilidade para manejar o sistema de armas, para defender seu bairro, seu Estado, a costa, os rios, a selva e as cidades”, ordenou o presidente. “Todo este território tem de ser inexpugnável contra a agressão anti-imperialista.”

Em um clima de fervor revolucionário, Maduro deu um ultimato aos milicianos: “Não me intimidaram, nem me intimidarão jamais. Não é tempo de traição. Que cada um se defina, se está com a pátria ou contra ela. Não é tempo de traição, é tempo de lealdade”.

Numa referência à reação chavista à tentativa de golpe contra o ex-presidente Hugo Chávez, no dia 13 de abril de 2002, Maduro instruiu: “Se algum dia vocês amanhecerem com notícias de que a ultradireita pretendeu impor alguma forma de golpe de Estado, saiam como no dia 13 para tomar o poder total da República. Não hesitem um segundo”.

Na tentativa de golpe de 2002, em meio a manifestações a favor e contra o governo por causa de demissões na estatal do petróleo PDVSA, almirantes e generais rebeldes ordenaram o sequestro de Chávez, levado para a base de Turiamo, 100 km a oeste de Caracas, simularam sua renúncia e nomearam presidente da República Pedro Carmona, dirigente da entidade empresarial Fedecámaras. Um contragolpe liderado pelo general Raúl Baduel, ex-companheiro de Chávez quando ambos conspiraram noutra tentativa de golpe militar em 1992, restituiu o poder ao presidente, que ficou fora por 47 horas. Em retribuição, Chávez o nomeou ministro da Defesa. Baduel, no entanto, foi demitido em 2007, por não apoiar uma tentativa de Chávez de aumentar seus poderes e eliminar os limites à reeleição, por meio de um referendo, no qual foi derrotado. Acusado de corrupção, ele foi condenado a 7 anos e 11 meses de prisão. A pena terminou no dia 3 de março, mas Baduel continua preso, sob as novas acusações de “atentar contra a liberdade e a independência da nação e traição à pátria”. Como o general tem prestígio sobre parte dos militares, a manobra para mantê-lo longe dos colegas pode ser mais um sinal de preocupação do governo com a lealdade de parte das Forças Armadas.

“Até agora está claro que o alto comando militar segue sendo leal ao governo de Maduro”, avalia Diego Moya-Ocampos, especialista em Venezuela da consultoria IHS Markit Country Risk, de Londres, em entrevista a EXAME Hoje. “As Forças Armadas praticamente administram a economia, estão encarregadas do negócio de importação de alimentos, controlam os portos, e cada vez mais os contratos de exploração de minérios e de petróleo. Além disso, controlam o aparato de segurança.”

Para o consultor, a pergunta, neste momento, é até quando o governo terá o apoio quase incondicional do alto comando militar. “Até que os protestos de rua escalem a um nível para além da capacidade do aparato repressivo, das polícias militar e nacional, de conter os protestos”, calcula ele. “É possível então que as Forças Armadas intervenham, ou para forçar que haja eleições, como a oposição está pedindo, ou tentando diretamente controlar o poder para que a oposição não continue acumulando poder. Ou seja, uma facção militar chavista ou uma facção militar que pudesse facilitar uma transição.”

À pergunta sobre se a longa crise venezuelana está se aproximando do fim, Moya-Ocampos responde: “Acho que é o começo do fim, do ponto de vista de que o modelo econômico que apoia Maduro não é sustentável sob os atuais preços do petróleo. Quanto mais se deteriora a economia, e mais se intensifica a escassez de remédios, de comida e outros bens básicos, mais o governo perde popularidade e mais aumenta a da oposição”

O analista explica que “cada vez a governabilidade se torna mais difícil para o governo e a oposição tem mais possibilidade de chegar ao poder, através de eleições, que é o que está pedindo, mas em um processo em que as Forças Armadas teriam de desempenhar um papel fundamental para criar as condições para que haja eleições e para que o governo transfira o poder para a oposição”.

Em mais um golpe na economia venezuelana, a General Motors anunciou nesta quinta-feira o encerramento das atividades de sua fábrica no Estado de Carabobo, levando à demissão de seus 2.700 operários. Segundo a montadora, a fábrica havia sido tomada por um sindicato. Depois que a empresa apresentou queixa, o governo confiscou as instalações.

“A GM rejeita as medidas arbitrárias e adotará todas as ações legais para defender seus direitos”, diz uma nota da maior montadora de automóveis americana.

A história é uma repetição de muitos outros fechamentos de empresas, diante dos confiscos, dificuldades de obter dólares e de importar insumos e pressões contra aumentos de preços, em meio a uma inflação de 741% nos últimos 12 meses terminados em fevereiro. A Ford e a Toyota paralisaram suas atividades por vários meses por falta de demanda e por não conseguir importar componentes. No ano passado, as montadoras fabricaram apenas 4.900 veículos na Venezuela. Há cinco anos, eram mais de 100 mil por ano.

O governo trata as empresas de todos os setores como inimigas e as acusa de tentar sabotar a economia. Mais de 1.400 empresas foram confiscadas desde que Chávez assumiu, em 1999 (ele foi sucedido por Maduro, seu vice, depois de morrer de câncer, em março de 2013).

Ao acusar a importadora Kreisel de inflacionar os preços, o governo confiscou milhões de brinquedos da empresa e os distribuiu para os pobres, no que chamou de Operação Menino Jesus.

Nos últimos dois anos, as fabricantes de pneus Goodyear, Bridgestone e Pirelli, a gigante de bebidas Pepsi e a empresa de produtos higiênicos Procter & Gamble se retiraram da Venezuela, registrando prejuízos de bilhões de dólares em seus balanços por causa da perda dos ativos.

É com essa condução da economia que a Venezuela, dona das maiores reservas de petróleo do mundo (297 bilhões de barris), castiga sua população com escassez de produtos básicos. Aos problemas econômicos se juntam o crescente autoritarismo do regime e o favorecimento dos que o apoiam. O mandato de Maduro só termina em 2019. A questão que definirá o desfecho dessa história é até que ponto a insatisfação dos venezuelanos será maior do que o seu medo de ir para as ruas e enfrentar a repressão, que também está ganhando corpo na mesma medida.

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