Uma lição trágica

Um dos primeiros atos do deputado oposicionista Henry Ramos Allup, depois de assumir a presidência da Assembleia Nacional no início de janeiro, foi mandar retirar da sede do parlamento venezuelano pinturas a óleo do ex-presidente Hugo Chávez e de seu sucessor, Nicolás Maduro; e substituir a de Simon Bolívar por uma versão clássica. Os oposicionistas justificaram que o herói da independência fora retratado com traços afro-descendentes, quando na realidade era de origem europeia. A pintura rejeitada havia sido feita por um retratista francês, com base em tomografias do “prócer”, exumado ordem de Chávez. Maduro qualificou a iniciativa de “fascista” e militantes chavistas fizeram grafites nos muros com os retratos de Chávez e do Bolívar moreno.

A controvérsia sintetiza a polarização entre as identidades do chavismo e da oposição. É como se fossem dois países, com duas histórias e dois heróis distintos. Há uma década e meia, quando Chávez chegou ao poder, a Venezuela não era um país muito diferente dos vizinhos sul-americanos e caribenhos – com exceção de suas reservas de petróleo, hoje comprovadamente as maiores do mundo. O país mergulhou em um conflito racial e destruiu a sua economia e suas instituições como resultado da estratégia de poder de um grupo, liderado por um homem. É uma experiência muito importante: uma aula sobre o que não fazer com um país.

Como se sabe, a bênção das commodities se transforma facilmente em maldição, quando não se tem uma cultura anterior que valorize a educação e o trabalho, como no caso da Noruega, que criou um fundo para medidas anticíclicas – em tempos de petróleo barato como agora – e usa pouco mais da metade dos juros que ele rende para gerar empregos com obras. Na ausência de uma cultura assim, o petróleo e outras commodities têm criado países preguiçosos, esbanjadores, desiguais, improdutivos e autoritários, já que as reivindicações democráticas estão associadas ao pagamento de impostos e a uma relação não clientelista com o Estado. Nos anos 70, a revista The Economist chamou de “doença holandesa” o desmantelamento da capacidade produtiva de um país associada à exportação de commodities.

No caso da Venezuela, a receita do petróleo reforçou os traços das sociedades latino-americanas: uma elite mais ou menos “branca”, com alguma ascendência europeia, educada para drenar as riquezas do Estado, seja por meio de contratos garantes de um capitalismo sem risco seja por cargos ou empregos públicos; uma massa pobre, indígena ou negra, explorada e abandonada à própria sorte; uma classe política corrupta; instituições frágeis.

Por meio de entrevistas com ex-guerrilheiros civis, como Douglas Bravo, ex-militares companheiros de conspiração de Chávez nos anos 70 e 80, como o general Raúl Isaías Baduel, e o historiador militar Alberto Garrido, pude reconstituir sua juventude de ativista revolucionário e místico, que mesclava um fervoroso catolicismo com a crença na força mágica de antepassados indígenas. Com o passar do tempo, Chávez, cuja extraordinária inteligência sofria forte influência de uma poderosa imaginação, passou a ser dominado por um pensamento mágico, que fundia as figuras difusas de Jesus Cristo, Simon Bolívar e dele mesmo, formando uma espécie de santíssima trindade atualizada e onipotente.

Chávez trazia no rosto a mescla entre o indígena e o negro, que representa o arquétipo do venezuelano comum. Ele aproveitava todas as oportunidades para fazer uso político desse biótipo em seus discursos. Quando voltou da reunião de cúpula ibero-americana de 2007 em Santiago do Chile na qual o rei Juan Carlos, da Espanha, mandou que se calasse, porque estava interrompendo a fala do então primeiro-ministro espanhol José Luis Zapatero, Chávez se identificou como um índio que, como na era colonial, só se calaria diante dos espanhóis se lhe cortassem a garganta. Incidentalmente, Zapatero estava defendendo seu antecessor e adversário político, José María Aznar, da acusação de Chávez de que o líder conservador espanhol seria “fascista”. Dificilmente Chávez, protagonista do envenenado ambiente político venezuelano, compreenderia que o governante de um país democrático não pode ouvir calado, em um foro internacional, uma acusação grave e injustificada como essa contra um ex-chefe de governo de seu país, independentemente de ser seu aliado ou rival.

O embate com o “ex-colonizador branco”, segundo a retórica chavista, lança luz sobre um aspecto central da psique latino-americana, explorada à exaustão por líderes políticos sul-americanos de diferentes matizes ideológicas, como Evo Morales na Bolívia, Alejandro Toledo no Peru e sucessivos líderes do Partido Colorado no Paraguai: o sentimento de inferioridade perante o mundo desenvolvido e uma percepção difusa de que sua pobreza está relacionada à exploração, passada e presente, dos recursos naturais de seu país.

Mas ninguém havia entrado nesse enredo com o fervor de Chávez. Ele recorreu a Bolívar, unanimemente aceito como herói nacional, para construir uma narrativa segundo a qual a Venezuela, ou sua precursora histórica, a Grã-Colômbia, idealizada pelo líder da independência, está predestinada a ser uma nação grande, em território e riquezas, expropriada por europeus e americanos, com a cumplicidade da “elite burguesa” venezuelana. O projeto da Unasul, para Chávez, representava a realização desse sonho.

Uma das caricaturas mais ferozes dessa visão de mundo foi apresentada em um videoclipe, exibido à exaustão pela TV estatal venezuelana, na década passada. Nesse desenho animado, María Corina Machado, então dirigente da organização não-governamental Súmate, de defesa da democracia, ajoelhava-se diante do Tio Sam para receber uma valise cheia de dinheiro, e exclamava: “Como é gostoso trair a pátria”. A acusação era baseada na informação de que a Súmate havia recebido recursos do National Endowment for Democracy, fundação independente americana que apoia instituições como essa em mais de 90 países. Depois eleita deputada, María Corina acabou presa.

Com esse tipo de propaganda, Chávez polarizou a Venezuela entre “ricos” e “pobres”, “brancos” e “crioulos”, “exploradores” e “explorados”. E consolidou-se como “pai dos pobres”, o primeiro e único a se importar com eles em 500 anos de história, — desse modo, superando até mesmo Bolívar, um representante da “elite” cujas credenciais se limitavam ao sonho da Venezuela grande e independente. Chávez lançou mão das receitas do petróleo para financiar “misiones”, como são chamados os programas de bolsas para estudantes, agentes de saúde, doutrinadores da ideologia chavista e ativistas comunitários. E assim uniu o carisma pessoal e a doutrina populista à ajuda material, inspirando em muitos venezuelanos uma incondicional devoção filial para com ele.

Como consequência, a Venezuela se tornou um lugar onde as pessoas não têm argumentos, mas posições: ou se está contra ou a favor de Chávez. Um mundo preto e branco, sem nuances, argumentos ou dúvidas. Falando assim, pode até parecer reconfortante para as mentes mais simples, para as disposições mais frágeis e até para os temperamentos mais irritadiços, que se impacientam com muita discussão e pouca ação. Mas, acredite, isso é o inferno — a morte da vida inteligente. O Brasil, com sua inocência juvenil, tem flertado nos últimos anos com essa reordenação da história e dos valores, com esse acerto de contas, esse justiciamento sumário, movido pelo sentimento de inferioridade causado pela desigualdade interna e pelos resquícios de colonialismo europeu. Chegou-se a olhar para o pré-sal como a âncora — eu ia dizer ponta de lança, mas isso sugeriria movimento, e aqui se trata exatamente da imobilização de um país e de uma sociedade, do congelamento de seus ressentimentos e preconceitos — de um novo Brasil supostamente altivo, mas na verdade apenas idiotizado, desconectado das grandes dinâmicas da inovação e do comércio mundial.

Em seu ato final, vencido pelo câncer — que escondeu do país na corrida para a eleição presidencial do fim de 2012 —, Chávez tentou ungir Maduro como seu sucessor, usando os símbolos da cruz de Jesus Cristo e da espada de Bolívar, em um ritual patético que dramatizou a sua “santíssima trindade”. Mas a âncora se soltou do barco chavista: o fim do petróleo caro lançou os venezuelanos em uma penúria sem precedentes, e eles deram a vitória à oposição nas eleições parlamentares de dezembro. Agora, os chavistas resistem a entregar o poder, entrincheirados no Tribunal Supremo de Justiça, cujos membros, indicados pelo “antigo regime”, procuram despir a Assembleia Nacional de suas funções.

Parece o fundo do poço. Não é. Ainda falta entrar em cena as Forças Armadas Bolivarianas. Os mesmos expurgos ocorridos na PDVSA, a estatal venezuelana, que perdeu seus gerentes e engenheiros não chavistas e, com eles, a sua capacidade de explorar petróleo de forma eficiente, e no aparato da Justiça, ocorreu também no oficialato. A doutrina de defesa foi substituída pela ideologia e pela lealdade ao chavismo. Militares são treinados para não se entregar ao inimigo. Os comandantes venezuelanos aprenderam que o inimigo é a oposição. A alternância de poder, quando atingir o cargo de presidente — comandante-em-chefe das Forças Armadas —, pode levar a Venezuela a uma convulsão.

 

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