Como os estudantes encontraram a base

Na saída de Quetta, a capital da província paquistanesa do Balochistão, o viajante que trafega na estrada

Rumo à fronteira com o Afeganistão, 120 quilômetros ao norte dali, depara-se com uma cadeia de montanhas, que se ergue a nordeste. Uma discreta placa desvenda um segredo de polichinelo:

“ASD Beleli”, o nome da estatal que administra os paióis de munição construídos pelo governo paquistanês com assistência americana, para suprir os mujahedin, que combateram os invasores russos entre 1979 e 89.
Mas as montanhas de Khost guardam também outras histórias menos conhecidas. Foi ali que, em 1996, Osama bin Laden montou seus campos de treinamento para a guerra santa. Um de seus propósitos era preparar jovens kashmiris para ações de comando na Caxemira, território de maioria muçulmana ocupado pela Índia. Daí a licença e o apoio do Paquistão, engajado na resistência no território disputado.
Voluntários recém-chegados e veteranos da guerra contra a Rússia de um grande número de países do mundo muçulmano se adestravam ali para ações de desestabilização de seus respectivos governos, com a finalidade de instaurar regimes fundamentalistas em seus países. Por essa época, a organização já levava o nome de “a Base”, al-Qaeda, em árabe. Era isso que ela era, literalmente: uma base militar de lançamento de ataques nos países
muçulmanos cujos governos moderados não atendiam aos requisitos da leitura literal do Corão.
Bin Laden criou al-Qaeda em 1989, no Paquistão. Além do lado militar, ela tinha também um componente social, como rede de assistência a combatentes da guerra santa, ou jihad, e a suas famílias. O dinheiro vinha da Arábia Saudita, que tinha múltiplos interesses, entre eles propagar a seita wahabita e apaziguar grupos radicais da Península Arábica descontentes com os regimes supostamente corrompidos das monarquias ricas em petróleo.
Nova agenda — Em 1992, Bin Laden transferiu-se para o Sudão, de onde só voltaria em 1996, com uma nova agenda em mente: lançar ataques contra os Estados Unidos, em repúdio à presença das tropas americanas estacionadas no solo sagrado de sua Arábia Saudita natal, desde a Guerra do Golfo de 1991.
Para o Paquistão, contudo, o que importava era sua contribuição para a guerra na Caxemira. Bin Laden chegou em maio. Em agosto, lançou sua primeira declaração de jihad contra os Estados Unidos. Em setembro, os taleban (“estudantes”, em idioma pashto) obtiveram um avanço extraordinário em sua arrancada para conquistar o Afeganistão, tomando Cabul e Jalalabad, a leste, derrotando as tropas leais ao presidente Burhanuddin Rabani e outras forças rebeldes que encontraram pelo caminho.
Agora, os campos de Khost, embora tecnicamente território paquistanês, eram controlados pelos taleban, que partiram daquela região no sudoeste do Paquistão e ao sul do Afeganistão. O governo paquistanês intercedeu junto aos taleban, para que restituíssem os campos de treinamento a al-Qaeda. Os taleban, que deviam sua própria existência ao Paquistão, que os abrigou nas madrassas, as escolas de teologia, e depois nos campos de treinamento da fronteira, atenderam ao pedido.
Foi a primeira vez que a cúpula dos taleban entrou em contato direto com os chefes da base dos “árabes afegãos”, como eram conhecidos os veteranos e voluntários estrangeiros. Os ex-seminaristas não tinham nada contra os Estados Unidos. Sabiam, pelo contrário, que parte do dinheiro e as armas que os mujahedin haviam recebido para expulsar os russos tinham vindo, indiretamente, dos americanos. Agora, eles partiam para a luta contra os mujahedin, mas essa era uma outra questão.
Os taleban estavam imbuídos de sua missão de conquistar o Afeganistão e qualquer outra consideração de ordem ideológica, qualquer sentimento antiocidental, era uma não-questão naquele momento, embora houvesse alguns dirigentes mais intelectualizados que cultivassem algum interesse num movimento pan-islâmico mais abrangente. Em qualquer caso, foi um encontro entre dois grupos bem diferentes. Mas Bin Laden não perdeu a chance de ganhar a confiança e criar afinidade com a nova força emergente no Afeganistão.
Para isso, serviu-se da experiência do Sudão, de utilizar sua fortuna familiar e os recursos enviados pela Arábia Saudita para agradar o governo oferecendo-se a executar projetos de reconstrução da infra-estrutura destruída pela guerra. O charme do romantismo pan-islâmico conjugado com os benefícios materiais atraiu o chefe supremo dos taleban, o mulá Mohammad Omar, para quem Bin Laden construiu uma mansão. O laço de amizade se solidificou em parentesco: Omar ofereceu uma filha para se tornar a quarta — e última, pela regra do Islã — esposa do milionário saudita.
O número dois do regime, Mohammad Wuaqil Muthawaqal, que tem o cargo de ministro das Relações Exteriores, nunca compartilhou o entusiasmo do mulá Omar. O chamado “elemento árabe” no Afeganistão, ou seja, o fato de o território afegão ter incrustado um Estado dentro do Estado que servia de base para atentados noutros países, era visto com preocupação por Muthawaqal.
O mal-estar se aprofundou quando Bin Laden deixou de ser um ativo e passou a ser apenas um problema, o que não tardou a ocorrer. Em abril de 1996, o então presidente Bill Clinton assinou um decreto congelando os depósitos do milionário saudita e proibindo os bancos americanos de fazer negócios com instituições financeiras que mantivessem transações com sua organização. Na prática, a iniciativa bloqueou progressivamente o acesso de Bin Laden a uma fortuna estimada entre US$ 250 e 300 milhões.
Quatro meses depois, um relatório do Departamento de Estado americano apontava o chefe da al-Qaeda como um dos principais patrocinadores do terrorismo islâmico internacional. Bin Laden, que antes gozava de mobilidade entre o Paquistão e o Afeganistão, foi obrigado a confinar-se na região de Kandahar, quartel-general dos taleban. Com o passar do tempo, o milionário saudita já não podia custear projetos no Afeganistão e se tornava objeto da ira dos Estados Unidos. A partir daí, de ativo, Bin Laden foi se convertendo gradualmente em passivo.
O processo culminou em agosto de 1998, quando os atentados às embaixadas dos Estados Unidos no Quênia e na Tanzânia foram atribuídos a al-Qaeda. Na época, o governo americano emitiu um ultimato ao regime taleban idêntico ao que se seguiu aos ataques do dia 11 de setembro: entreguem Bin Laden ou arquem com as conseqüências. Os taleban preferiram arcar com as conseqüências e uma chuva de 70 mísseis de cruzeiro caiu sobre os campos de Khost e das proximidades de Jalalabad — portanto, dos dois lados da fronteira.
Era apenas o prenúncio da tempestade deste outubro inesquecível. Por que os taleban decidiram pagar um preço tão alto por uma presença que se instalou como troca de favores com o Paquistão? Os laços subitamente estreitos do mulá Omar com o milionário saudita seriam suficientes para explicar essa deferência para com um hóspede que trouxe benefícios de tão curta duração?
Na entrevista exclusiva ao Estado no dia 1.º em Spin Buldak, no sul do Afeganistão, os dirigentes regionais taleban lembraram que não foram eles os responsáveis pelo ingresso de Bin Laden no país, mas “os americanos”, em sua intepretação livre da história. Agora que ele estava lá, como hóspede, ficaria enquanto os taleban quisessem — ou até que lhes fosse provado o envolvimento nos ataques aos EUA.
Essa posição tem um cunho político bem delineado: independentemente de sua convicção ou não do envolvimento de Bin Laden, os taleban parecem acreditar que estariam aniquilados perante si mesmos e os afegãos se atendessem incondicionalmente à exigência americana. Ninguém mais os respeitaria, depois dessa humilhação, a começar por eles próprios, parece ser seu sentimento íntimo. Entre sucumbir ao próprio desprezo e ao castigo mortal dos EUA, preferiram aguardar esse último.
Assim se fechou o círculo da breve existência dos taleban. Entre a decisão do Paquistão de lhes dar vida, a retribuição na forma do abrigo a Bin Laden e o preço a pagar por ele. Que no fundo é o preço da própria existência dos taleban. A fatalidade dos destinos cruzados com “a base” foi encarada com a estranha serenidade forjada na revelação da própria tragédia.
Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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