Escola não tem teto nem cadeiras, mas empolga crianças

Meninos e meninas assistem com concentração e disciplina às aulas que os taleban lhes negavam

JALALABAD – À primeira vista, a Escola Primária Camp Farm Ada parece uma praça. As turmas masculinas têm aula ao relento. As meninas são privilegiadas: suas “salas de aula” ficam debaixo de lonas fornecidas pelo Unicef. Tanto meninos quanto meninas se sentam no chão. A pequena lousa se sustenta num tripé de madeira. Os alunos chegam a ter 13 livros, que os pais compram, com sacrifício, por cerca de 25 rúpias paquistanesas (a moeda mais usada no leste do Afeganistão), ou pouco menos de US$ 0,50 cada.

“Quando chove, temos de dispensar os meninos”, queixa-se o professor Hulan Nabir. “Não sei como será no inverno.” O governo da província de Nangarhar tinha dito que na área seria construída uma escola, mas até agora, nada. Os professores ganham 2.500 rúpias (menos de US$ 50) por mês, mais ou menos o valor do aluguel de uma casa em Jalalabad, antigo reduto da al-Qaeda, onde moravam o milionário terrorista Osama bin Laden e seus seguidores árabes. Vários professores moram no campo de refugiados de Palimi, que fica em frente à escola, e abriga 35 mil pessoas.

“É muito difícil dar aulas nessas condições”, diz o professor Abdul Bassir. Mas a disciplina e a concentração dos 3 mil alunos, divididos em três turnos de três horas cada, são notáveis. As meninas estão contentes porque agora podem estudar, o que estava proibido durante o regime taleban (1996-2001). “Claro que estamos felizes”, diz Nilofar, de 12 anos, que cursa a quarta série. “Os taleban não eram bons porque não deixavam as meninas estudarem. Quem não estuda fica como um animal.” Metade dos homens e quatro em cada cinco mulheres acima dos 15 anos são analfabetos no Afeganistão, segundo o Fundo Monetário Internacional.

O uniforme das meninas, em todo o país, é uma túnica e uma calça larga pretas e um véu branco cobrindo a cabeça. Os meninos não usam uniforme. De acordo com a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAid), a proporção de meninas em idade escolar matriculadas subiu de 18% no ano passado para 75% este ano.

Nilofar começou a estudar em Peshawar, no oeste do Paquistão, para onde sua família se mudou durante o regime taleban, voltando depois de sua queda, como milhares de afegãos. Seu pai é professor e sua mãe cuida da casa – como a vasta maioria das mulheres -, embora tenha estudado até a oitava série. Nilofar quer ser médica. Suas matérias preferidas são pashto, dari (os dois idiomas oficiais do Afeganistão) e estudos islâmicos. O professor de geografia garante que já falou do Brasil para as meninas. “Onde fica o Brasil?”, pergunta o repórter. Silêncio. O professor sopra: “América”, e as meninas repetem.

Os meninos também estão mais satisfeitos. “Agora temos muitas matérias boas para estudar”, diz Zakir, de 12 anos, que começou nessa escola e já está na sexta série. “Antes, só tínhamos estudos islâmicos, e o professores eram todos mulás. Os de agora são mais instruídos.” Os taleban mandaram os professores para casa e colocaram sacerdotes para ensinar. Na Camp Farm Ada só há professores homens. Noutras escolas, no entanto, as professoras também voltaram ao trabalho.

Zakir, cujo pai é operário da construção civil, e a mãe cuida da casa, também quer ser médico. O menino está confiante no futuro. À pergunta sobre o que acha da presença de tropas estrangeiras no seu país, ele se sai com essa: “Os americanos são nossos hóspedes.”

“Ensinamos a eles que os estrangeiros vieram para trazer paz, estabilidade, para nos ajudar, e por isso é que podemos vir à escola, porque nos sentimos seguros”, conta o professor Abdel Majod. A disciplina de história afegã inclui os fatos mais recentes, da ocupação soviética (1979-89) à guerra civil (1992-96), o regime taleban e sua derrubada pelos americanos, ajudados pela Aliança do Norte, no fim de 2001.

São 10 horas e o primeiro turno está encerrado. Farhad, de 15 anos, que nasceu no campo de Palimi, para onde seus pais se mudaram quando sua casa foi destruída na guerra com os soviéticos, sai para vender pipas. Outra coisa proibida na época dos taleban, que diziam que a brincadeira era objeto de apostas entre meninos que tentavam derrubar as pipas dos outros colando vidro moído na linha.

Pelo mesmo motivo, os taleban proibiram o buzkashi, um brutal precursor do pólo que no lugar dos tacos e da bola usava uma rês – ou prisioneiro – decapitada, ao lado de jogos mais inofensivos, como o xadrez. Esportes com bola, como futebol e vôlei, muito apreciados pelos afegãos, continuaram permitidos, desde que os torcedores se limitassem a gritar “Allah-u-Akbar (Deus é grande)” nos lances mais emocionantes.

Farhad compra as pipas por 10 rúpias (US$ 0,20) e as vende por 15. Segundo ele, a procura é boa: de sete a oito pipas vendidas por dia. A propósito, Farhad e seus amigos fazem aquelas guerras de pipa de que os taleban não gostavam.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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