Não fale, não fotografe, não fique muito tempo

Nenhuma pessoa que não seja da etnia pashto, majoritária no Paquistão e no Afeganistão, passa pelo último posto de controle da tribo dos achakzaís

Mohammad Kassim, no pátio de seu armazém de alimentos, em Spin Buldak

SPIN BULDAK, Afeganistão – Os milicianos conhecem os moradores locais que cruzam diariamente a fronteira. Os desconhecidos têm ou de apresentar visto de entrada no Afeganistão — que o Taleban deixou de fornecer — ou pertencer às tribos pashtos que controlam o território autônomo ao longo da fronteira.

No segundo dia de tentativa, o parentesco com um general afegão de um dos pashtos que acompanham o jornalista brasileiro abre caminho, junto com o compromisso de não falar com ninguém, não fotografar e não permanecer muito tempo. Ao cruzar a fronteira do Paquistão para o Afeganistão, os veículos mudam de pista. Os paquistaneses trafegam na pista da esquerda, com o volante à direita, como os ingleses que os colonizaram; os afegãos, que se orgulham de nunca terem sido subjugados por outro país, trafegam pela direita.

Do outro lado da linha de controle, grupos de afegãos formam pequenos círculos em torno dos milicianos achakzaís, tentando convencê-los a deixar que cruzem a fronteira porosa mas oficialmente fechada para refugiados. Do lado esquerdo, um canhão de artilharia antiaérea sobressai do muro que cerca uma delegacia da polícia taleban e a grade do portão deixa entrever lança-mísseis portáteis e fuzis-metralhadoras. Mais adiante, o símbolo do regime: uma bandeira branca com os dizeres “Acredite só em Deus”, em idioma pashto.

Dos dois lados da estrada para Kandahar, tendas de madeira ou alvenaria vendem componentes de máquinas, transformadores, armas, tanques e helicópteros — sucata da guerra contra os russos (1979-89). Nesse sinistro bazar, como em muitos outros espalhados pelo país, está em oferta o que restou do Afeganistão moderno, de sua infra-estrutura incipiente, de sua vida normal.

Depois da guerra com os russos e durante a guerra civil que se seguiu, a população passou a ter como principal meio de subsistência recolher ferro velho. Sofisticados componentes eletrônicos do armamento pesado deixado pelos russos era vendido pelo seu peso.

Homens vestindo shalwar kameez (bata longa e calça larga), turbantes esfarrapados ou túpis (pequenos quépes), calçando sandálias de plástico ou de couro igualmente rotas, caminham pelas vias poeirentas, ou simplesmente descansam em macas de corda trançada.

Mulheres são uma visão rara. Passam às vezes furtivamente de uma casa a outra, hermeticamente cobertas pela burka, o conjunto de vestido longo e véu com uma tela que esconde o rosto. As crianças não podem brincar na rua.

Não há televisão nem rádio. Não é permitido ouvir música. É proibido divertir-se no Afeganistão.

A crise que se seguiu aos ataques do dia 11 consumou o isolamento do Afeganistão: os funcionários estrangeiros da ONU foram retirados do país, seus escritórios foram ocupados e as comunicações cortadas; os diplomatas do Paquistão, dos Emirados Árabes Unidos e da Arábia Saudita, os únicos credenciados em Cabul, voltaram para seus países.

É proibido sair do Afeganistão, com exceção do trânsito local no interior das áreas tribais ao longo da fronteira com o Paquistão. Cada família deve fornecer pelo menos um homem para lutar na guerra santa que se avizinha. Todos os aspectos da vida são regidos pela Sharia, a lei islâmica. Os decretos do Taleban, ou fatwas, como aquele que determina matar qualquer estrangeiro que se aviste, têm o peso da ordem divina. Não obedecê-los implica padecer no inferno — e, antes disso, provavelmente nas mãos dos talebans.

O controle dos milicianos taleban sobre a comunidade é tão absoluto que sua presença já não precisa ser ostensiva. Armados com seus inseparáveis fuzis Kalashnikov, eles se abrigam do sol e da poeira em cabanas de palha. O forasteiro abordar alguém para conversar é arriscado demais para ambos. É impossível medir o verdadeiro grau de adesão dos afegãos ao Taleban, conhecer seus reais sentimentos. Nada escapa ao controle.

Foi nessas condições que o Estado fez sua única entrevista com um não-membro do Taleban dentro do Afeganistão, Mohammad Kassim, atacadista de alimentos de Spin Buldak, e parceiro do empresário que trouxe o jornalista para o lado afegão.

“Temos um relacionamento muito bom com o Taleban”, assegurou o comerciante. “Todos os empresários estão prontos para lutar contra o inimigo. Toda a comunidade empresarial vai apoiar o governo.” Ao lado do consenso forçado, há motivos práticos para contentamento: o Taleban impôs a ordem e desarmou a população depois de duas décadas de guerra; não cobra tributos sobre alimentos nem sobre importação, e taxa pouco os outros produtos. “A cada dia, a situação melhora”, anima-se Kassim.

A descrição do estado de seus negócios, no entanto, talvez forneça uma pista dos sentimentos dos afegãos. “Estou vendendo 20 vezes menos do que vendia antes”, calcula Kassim, no armazém abarrotado de sacas de cereais e açúcar.

“As pessoas estão com medo de fazer estoque, porque, se precisarem ir embora do país, perderão o que têm.” Quatro homens ingressam no pátio da distribuidora de alimentos e os guias do jornalista brasileiro explicam que é hora de voltar.

O jipe ainda percorre algumas ruas de terra de Spin Buldak antes de rumar de volta para a fronteira, onde grupos de afegãos impregnados de poeira e apreensão tentam persuadir os milicianos achakzaís a deixá-los passar.

O jornalista é o único desconsolado por estar deixando o Afeganistão.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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