No ar, o telejornal independente

Banida sob o regime taleban, a televisão cai no gosto dos afegãos

CABUL – Abdul Ahmad Norzad entrou no curso de jornalismo da Universidade de Cabul no início de 2000. Na época, os taleban estavam solidamente instalados no poder, e ninguém poderia imaginar que, daí a dois anos, seriam derrubados por uma coalizão entre os Estados Unidos e a Aliança do Norte. Assim, o horizonte de Norzad era incrivelmente limitado.

Havia no país uma estação de rádio, a Voz da Sharia (lei islâmica), que transmitia orações e aquilo que os taleban considerassem notícia. Era proibido ouvir música. E um jornal, o Sharia, um tablóide de quatro páginas sem fotos, que também eram proibidas, seguindo à risca a proscrição islâmica de imagens humanas – razão pela qual eles destruíram as estátuas de Bamiyan, as primeiras a darem forma humana ao Buda, erguidas por volta do século 2.°. Pelo mesmo motivo, televisão também era proibido, e muitos aparelhos foram espatifados pelos taleban.

Mesmo assim, Norzad seguiu sua vocação. “Já na época dos taleban eu tinha muita vontade de ser jornalista. Eu observava os problemas da sociedade e queria poder relatá-los e ajudar as pessoas a refletir sobre eles”, conta o repórter, hoje com 24 anos. Norzad reconhece que isso seria difícil se os taleban tivessem continuado no poder. “Naquela época não havia liberdade. Ninguém podia contar os fatos.” Quando os taleban caíram, Norzad estava no segundo ano de jornalismo.

Há seis meses, o jornalista ouviu no rádio que uma emissora de TV independente ia entrar no ar e estava procurando repórteres. Norzad, que já tinha trabalhado no Kabul Times Weekly, um tablóide bilíngüe de 12 páginas, levou seu currículo e foi selecionado. Entre outros quesitos, por falar inglês, além de dari e pashto, as três línguas em que a TV Afegã transmite seus noticiários. Os estrangeiros não são muitos no Afeganistão, mas o seu poder aquisitivo atrai anúncios. Depois de seis meses de testes, a emissora foi ao ar há uma semana, nas vésperas da eleição presidencial do dia 9.

“Nunca imaginei que fosse acabar na televisão”, sorri Norzad, um dos quatro repórteres da emissora – dois em Cabul, um em Kandahar (sul) e outro em Herat (nordeste). “Os afegãos gostam muito de televisão”, diz ele. “A maioria não sabe ler e, junto com o rádio, é o meio ideal para eles. A TV é melhor ainda, porque eles podem ver os fatos.” O analfabetismo acima dos 15 anos abrange 49% dos homens e 79% das mulheres, segundo relatório de 2003 do Fundo Monetário Internacional.

Nenhum resquício de hostilidade contra a TV, entre os que confiavam na leitura que o Taleban fazia do Islã? “Quem pensa dessa forma vive afastado. Na cidade, não há esse problema”, garante o repórter. “Não creio que haja afegãos que sejam contra a TV”, diz Abdul Rahman Panjshiri, diretor de Planejamento da TV Afeganistão, a tradicional emissora estatal, que transmite em dari e pashto, as duas principais línguas do país. “Todo mundo gosta de assistir.”

Se fotografia servir de parâmetro, então os afegãos adoram imagens. Eles não só permitem como pedem para ser fotografados, tanto nas cidades quanto na zona rural. E agradecem depois, mesmo sem saber que podem ver o resultado nas câmeras digitais; apenas por se sentirem bonitos, ou importantes, quando fotografados.

“Eles”, bem entendido, refere-se aos homens e às crianças. Não ouse fotografar uma mulher sem autorização expressa do homem que a estiver acompanhando. A reação pode ser violenta.

Mas já há até uma TV Mulher entre as várias emissoras que estão surgindo no país, graças a um decreto do presidente Hamid Karzai autorizando canais de televisão e emissoras de rádio privadas.

Há 35 emissoras de rádio no país e dezenas de jornais em formato tablóide, vários deles com uma parte em inglês e outra em idioma local. Há uma semana, surgiu em Cabul a Tlo (Amanhecer), que, como a TV Afegã, pretende viver de anúncios publicitários. A TV estatal é considerada pró-governo. Mas as outras, pertencentes a empresários, querem construir uma imagem de imparcialidade.

O horário de transmissão, por enquanto, é escasso. A TV Afegã transmite das 17h30 às 21h30 e a estatal, das 14h às 23h. É bem verdade que, onde existe serviço público de eletricidade, ela não dura muito mais que isso. A programação é recheada de filmes, novelas e videoclipes indianos e iranianos. Panjshiri, que nunca ouviu falar das novelas brasileiras, conta que acaba de fechar a compra de seriados japoneses. Também está recebendo ajuda da TV holandesa para produzir um programa de notícias para crianças.

A precariedade é grande. Os estúdios não têm teleprompter, e os apresentadores têm de ler no papel. Os telejornais de meia hora por dia em cada língua são os únicos programas ao vivo. As transmissões ao vivo de fora dos estúdios, via internet, são raras. Não há links por satélite.

Entretanto, os profissionais não se queixam. A época em que o seu ofício estava banido é recente demais. “Os taleban são o período mais obscuro de toda a história do Afeganistão”, diz Panjshiri, que deixou o Afeganistão dois dias antes de os taleban tomarem Cabul, em 1996, e se exilou na Holanda até a derrubada do regime, em 2001. “Ninguém deve jamais esquecer aquela época.”

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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