Quero um presidente fundamentalista islâmico

Muitos afegãos lembram com saudade que no tempo do Taleban não havia roubo: mãos dos ladrões eram cortadas

DARGAI – Os sentimentos dos afegãos vão mudando à medida que se vai para o leste e para o sul, os redutos do fundamenalismo islâmico e da etnia pashtun, à qual pertencem os taleban. “Quero que o próximo presidente seja fundamentalista islâmico”, diz Baghram Khan, de 99 anos, o líder do vilarejo de Dargai, ao pé da montanha de Tora Bora, antiga base da al-Qaeda. “Precisamos das regras do Islã e de paz aqui, com todos trabalhando, sem armas nem conflitos.”

A liberação da venda de cerveja, pela primeira vez no país, e mulheres saindo na rua sem burka (o vestido que cobre todo o corpo e o rosto) atendem a esses preceitos fundamentalistas? Khan se mostra surpreso com a pergunta. “Não acredito que isso esteja acontecendo”, diz o líder, que vive numa vila isolada de 200 habitantes, 65 quilômetros a oeste de Jalalabad, onde há rádio, mas não TV. “Nunca vi mulher sem burka. Mulher tem que usar burka.” Khan, cujo voto seria seguido por todo o vilarejo, não revela seu candidato: “Isso é meu segredo.”

Com o fim do Taleban, muitos afegãos se queixam da deterioração da segurança pública. Em Jalalabad, principal cidade do leste, reduto do Taleban e da Al-Qaeda, Fazal Rabbi, engenheiro de estradas do governo e dono de concessionária de veículos e postos de gasolina, diz que na época dos taleban praticamente não havia roubos de carros, que agora se tornaram comuns.

A explicação para a mudança é simples: os taleban aplicavam à risca as penas previstas na Sharia, a lei islâmica, que manda cortar a mão esquerda de quem rouba, a direita em caso de reincidência e depois uma perna. Em caso de assassinato, a sentença é a decapitação. “Segurança se consegue assim”, diz Rabbi. “Há muita gente armada neste país.”

O motorista Essan Peshi é um dos que tiveram a casa roubada, em agosto do ano passado. Ele conta que a polícia deteve cinco pessoas inocentes, e o chamou para reconhecê-los. Peshi mandou soltar os homens e retirou a queixa. “Na época do Taleban, ninguém roubava”, diz ele.

O lojista Farid Ullah, de Torkham, 77 quilômetros a leste de Jalalabad, na fronteira com o Paquistão, também cita a segurança como a principal vantagem do regime derrubado em 2001. Mas diz que a economia melhorou com o governo interino de Karzai. Rabbi também nota essa diferença. A razão, dizem eles, é que os taleban isolaram o Afeganistão, enquanto Karzai conta com o apoio da comunidade internacional.

Além da ajuda de fora, com a derrubada dos taleban e o fim da guerra, muitos afegãos estão voltando do exílio com moeda forte no bolso. Os afegãos provenientes do Vale do Pandshir, reduto da Aliança do Norte, muitos deles morando em Cabul, diz Rabbi, receberam dinheiro dos EUA para lutar contra os taleban e a Al-Qaeda, e estão investindo na capital. “É por isso que em Cabul estão mais felizes que aqui.”

Rabbi, funcionário do governo há 15 anos, lembra com saudade que, quando o mulá Mohammed Omar, líder máximo do Taleban, dava uma ordem, ela era seguida à risca. Mas, segundo ele, os taleban estavam errados numa coisa: o banimento das meninas das escolas. O engenheiro tem uma filha de dez anos, que não perdeu nada porque atingiu a idade escolar depois da queda dos taleban. “Quando minha mulher, por exemplo, fica doente, tem de ser tratada por uma médica, e por isso o país precisa ter mulheres educadas”, explica Rabbi, que pretende votar em Karzai: “Todo mundo sabe que ele vai ganhar. Além disso, é um homem razoável. Não é contra usbeques e tajiques, fala muitas línguas e é pashtun.”

Ullah também votará em Karzai, e vai mais longe: sua segunda candidata favorita é a médica Massouda Jalal, de etnia tajique. “O país precisa esquecer o passado e olhar para o futuro”, diz Ullah, cuja esposa usa burka, como toda mulher nos redutos tradicionais pashtuns. “Quem for mais preparado deve governar, seja homem ou mulher.”

Ullah e muitos outros afegãos se queixam de que os taleban os obrigavam a ir para a mesquita, quando eles preferiam ir espontaneamente para as cinco orações diárias. “F…-se os taleban”, pragueja o policial Gulkhar Kuchi, de 18 anos, num lugarejo na beira da estrada na província de Laghman, entre Cabul e Jalalabad. “Eles criavam problemas demais. Implicavam com o corte de cabelo, não podíamos fazer a barba, nos obrigavam a rezar”, vai listando Kuchi, que esclarece que é religioso e gosta de fazer as orações. “Se dizíamos que já tínhamos rezado, eles falavam: ‘Então reze de novo’.”

O que une os afegãos nesta eleição é seu intenso interesse em votar, apesar das ameaças. Às 8h30 de segunda-feira, Marahan Serbilan e seu sobrinho Karmadjan já tinham caminhado 57 dos 150 quilômetros que separam Cabul de Jalalabad. Eles deixaram Cabul na manhã de domingo e esperavam chegar a Jalalabad no fim da tarde de terça. Serbilan vive de levar cargas em seus quatro camelos e dez jumentos entre as duas cidades, cobrando 200 afeganis (US$ 4) pelo serviço. Analfabeto, ele não sabe como nem em quem vai votar. “Mas vou colocar um papel lá dentro.”

 Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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