Refugiados afegãos querem outro regime islâmico

Cansados do Taleban, milhares fogem do país, mas só aceitam no futuro um governo muçulmano

JAMRUD, Território Tribal Autônomo – O teto de palha sobre gravetos, sustentado por estacas de pau, oferece uma generosa sombra sob o sol das 10 horas no vilarejo de Jamrud, no território administrado pelas tribos afegãs ao longo da fronteira com o Paquistão. Um muro alto protege o terreno da poeira levantada pelo tráfego nas margens da Rodovia do Grande Entrocamento, que liga o território a Cabul, a capital afegã.

Afegãos que abandonaram suas casas nos últimos dias dão seu depoimento sobre a situação no país – e sobre suas esperanças e incertezas. Os relatos sobre regiões tão distantes quanto Jalalabad, no sudoeste do Afeganistão, e Cabul, não destoam muito. Cada família é obrigada a entregar pelo menos um homem para lutar na guerra santa contra os Estados Unidos. Num país destruído por 22 anos de guerra, devastado pela seca e subordinado à tirania fundamentalista, a perspectiva de bombardeios americanos leva a população a fugir como pode.

Esses afegãos não demonstram nenhuma predileção por estilos de governo, desde possam ter um pouco de sossego para tocar suas vidas em sua terra natal. Diante do que têm observado, admitem que o Taleban pode não ser mais conveniente para eles. “Parece que o mundo todo está contra o Taleban e ninguém vai ajudá-lo”, diz o motorista Khial Mohammad Afridi, que chegara na véspera da cidade fronteitiça de Torkham. “Sendo assim, se outras pessoas tiverem condições de governar, será melhor para nós. Não queremos que o Afeganistão continue tendo tantos problemas.” Poderia ser o septuagenário rei Zahir Shah, destronado em 1973? Khial acha que sim. “Ele deve ser melhor do que outros, porque muitas pessoas no Afeganistão e muitos governos estrangeiros o querem. É um homem idoso, mas pode ser bom.”

A delicada conversa com os afegãos sobre uma mudança de regime no Afeganistão está emoldurada por três premissas: que seja um governo muçulmano, não represente minorias étnicas, como é o caso da Aliança do Norte, e não seja imposto de fora.

O rei é um favorito, no momento. “Voltarei quando o rei retornar ao governo, porque espero que então haja paz”, estima Sultan Mohammad, de 16 anos, que vivia de biscates em Jalalabad, de onde saiu há três dias, fugindo do recrutamento forçado do Taleban. “Muita gente foi embora de Jalalabad com medo da guerra e está na fronteira sem poder passar”, descreve. O governo paquistanês só permite a entrada de afegãos com vistos válidos. Antes, a passagem era livre. Muitas rotas clandestinas ao longo da porosa fronteira de 2.500 quilômetros continuam servindo, contudo, para a entrada de milhares de refugiados.

Desde os ataques do dia 11 nos Estados Unidos, alimentos e outros bens de primeira necessidade dobraram de preço no Afeganistão, refletindo-se em Peshawar, a capital da Província da Fronteira Noroeste, do lado paquistanês, que importa frutas do país vizinho. A população já empobrecida pela guerra e pela seca não tem como arcar com os novos preços.

“Os afegãos não têm estado muito felizes nos últimos cinco anos (desde que os fundamentalistas tomaram Cabul)”, testemunha o adolescente. “Existem regras demais”, queixa-se, referindo-se às normas de conduta prescritas pela lei islâmica, estritamente impostas pelo regime.

O Taleban também sofre rejeição no Território Autônomo, uma área de mais de 8 milhões de habitantes governada pelos chefes de dez tribos afegãs. “Os governos anteriores respeitavam as tribos”, recorda Zarin Shah Afridi.

“Tínhamos nossos escritórios e recebíamos pensões e outros benefícios do governo. Agora, estamos revoltados com o Taleban, porque fechou nossos escritórios, eliminou os benefícios e impôs regras que não respeitamos.” As tribos afegãs professam o islamismo desde que ele chegou à região, no início do século 8.º. Mas têm seus próprios costumes, normas de condutas e festas, que o regime fundamentalista reprimiu violentamente. “Antes, andávamos tranqüilamente pelo Afeganistão e ninguém nos perguntava por que não tínhamos barba”, conta Zarin, que cultiva apenas um bigode grisalho. “Agora, sem barba, não deixam passar.”

Os irmãos Ahmad Uali, de 25 anos, e Hashem, de 17, chegaram na véspera, deixando sua fazenda de 50 acres em Logar, perto de Cabul, e percorrendo seis horas de táxi até o posto fronteiriço de Torkham e outras duas horas de ônibus ao vilarejo de Jamrud. A terra é boa e a chuva costumava vir na hora certa, para regar os cultivos de trigo, milho e frutas. Há um ano não chove em Logar. Os irmãos vieram tolhidos pela seca e pelo medo da guerra. Hashem, na idade de alistamento, está especialmente aliviado de ter cruzado a fronteira.

Os afegãos podem estar cansados do Taleban, mas prometem se unir para defender seu país, em caso de ataque. “Todos lutarão se houver invasão”, ressalta Ahmad, a barba negra espessa e o cabelo ondulado sob o pequeno gorro de tecido usado pelos afegãos. Os fuzis Kalashnikov herdados do confronto com os russos estão por toda parte e munição também não é o problema, já que eles têm suas próprias fábricas.

Na calçada em frente ao mercado de Jamrud, um morador de Jalalabad garante que veio para chamar os companheiros para a guerra santa. “Não gostávamos dos governos anteriores”, afirma, sob os aplausos de 20 homens ao seu redor.

“Só acreditamos em governos islâmicos.”

“Se vier um governo bom, islâmico, com apoio financeiro (internacional), nós o aceitaremos”, continua Ahmad, que gostaria que o Taleban pudesse governar todo o Afeganistão e houvesse paz. Mas não foi assim. Membro da etnia patan, maioria no Afeganistão, Ahmad lembra que os governos anteriores pertenciam a esse grupo étnico e foram capazes de se conciliar com os tajiques, usbeques, farsis e hazaras.

Zarin Shah também aceitaria um governante como o rei, patan como ele. Mas, enquanto serve mais uma rodada de chá de erva doce importada do Sri Lanka, faz uma recomendação a quem quer que queira estabilizar esta região: “A maioria dos afegãos está desempregada e passando necessidades, e é por isso que muitos decidem dedicar-se ao terrorismo. Os EUA não conseguirão acabar com o terrorismo à força. Se ajudarem a economia do país, o terror diminuirá e as pessoas passarão para o seu lado. Se insistirem na guerra, haverá mais fome, menos emprego e mais terror.” 

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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