Regime no Afeganistão começa a balançar

Ameaça de ataque dos EUA provoca mudança de lado de combatentes e chefes tribais

ISLAMABAD – Os Estados Unidos ainda não dispararam nem um tiro sequer, mas a escalada militar e a iminência de conflito já começam a desestabilizar o regime do Taleban, que até aqui controlava 90% do território afegão. Alguns dos refugiados afegãos que conseguem passar para o Paquistão, seja com visto de entrada ou atravessando clandestinamente a porosa fronteira de 2.500 quilômetros, têm feito relatos de episódios de insurgência da população contra o regime mantido a ferro e fogo pelos fundamentalistas.

O regime mobilizou os cerca de 40 mil soldados regulares e mais 300 mil milicianos que faziam o policiamento e os concentrou nos dois centros nervosos do poder – Cabul e Kandahar -, nas instalações militares e outras áreas consideradas vitais e sobretudo na frente de batalha contra seus inimigos da Aliança do Norte, que intensificou os ataques, animada com a perspectiva de se aliar aos Estados Unidos.

A iniciativa desguarneceu a manutenção da ordem interna nas cidades menores e na zona rural, onde funcionários do governo encarregaram os chefes locais a organizar o próprio policiamento.

Foi a primeira vez, desde que o Taleban tomou Cabul, em 1996, que o regime abdicou do estrito controle sobre a segurança interna. Com isso, vários chefes dos clãs e das tribos locais adotaram posturas que vão da independência à insurgência, segundo os relatos de alguns afegãos que chegaram ao Paquistão nos últimos dias. Informação confiável sobre o que ocorre dentro do Afeganistão é a matéria-prima mais escassa da região, mas é a primeira vez em cinco anos que transpiram pela fronteira sinais consistentes de afrouxamento do controle fundamentalista sobre a população.

De acordo com o jornal paquistanês The News, a revolta popular é mais evidente na Província de Paktia, no sudoeste do Afeganistão, fronteira com o Paquistão. A prioridade dada pelo regime afegão à defesa de suas linhas no norte e a percepção de esgarçamento do controle do Taleban levaram a reuniões de comandantes de diferentes grupos de mujahedin (combatentes da liberdade), formados na guerra contra os invasores soviéticos (1979-89). Os comandantes estão discutindo de que lado vão ficar nessa nova fase da guerra civil afegã.

Segundo a descrição feita pelos refugiados, alguns comandantes dos mujahedin já passaram para o outro lado da luta, inspirados no estado de ânimo da população local. Parte dela se sente estimulada pelas notícias de um eventual retorno do rei Zahir Shah, que governou o Afeganistão durante 40 anos, até 1973, quando foi derrubado num golpe liderado por seu primo, Daoud Khan, com apoio da esquerda.

Alguns outros sinais parecem confirmar a debilitação do governo. O posto alfandegário de Torkham, no oeste do Afeganistão, foi abandonado pelas autoridades afegãs. A passagem está fechada e os caminhões levando produtos paquistaneses não podem entrar pela Rodovia do Grande Entroncamento, a principal estrada que liga os dois países.

Em algumas localidades da Província de Paktia, os moradores estão se insurgindo contra milicianos forasteiros encarregados pelo Taleban de manter a ordem. De acordo com os relatos, esses milicianos estão impondo rigor no cumprimento dos preceitos fundamentalistas, que haviam sido relaxados pelo próprio governo taleban. A população local havia voltado a tocar tambores típicos em festas e a celebrar casamentos e outras ocasiões de forma efusiva, como prevê o costume local. Nas demais áreas do país, o Taleban seguia impondo a sobriedade. Agora, os moradores de Paktia se estão ressentindo da ausência da liberdade recém-conquistada.

O reavivamento da identidade local, se confirmado e intensificado, pode significar um mau presságio para o Taleban – já ameaçado pela máquina de guerra e inteligência militar americanas. O que derrubou o regime comunista afegão, instaurado em novo golpe, em 1978, foi justamente a união dos líderes tribais contra a tentativa de homogenizar o país, eliminando os costumes locais – considerados retrógrados pelos revolucionários – e de minar a fé islâmica.

O ponto de coesão entre os chefes de clãs e de tribos, num país de extraordinária diversidade étnica, em que as grandes unidades familiares desempenham papel social central, foi a religião islâmica.

Entretanto, o ímpeto fundamentalista dos talebans (estudantes) formados nas escolas religiosas do noroeste do Paquistão pode tê-los induzido ao mesmo erro, ao tentar impor a homogeneidade onde a diversidade impera naturalmente.

A porta-voz do escritório da ONU no Afeganistão, Stephanie Bunker, disse ontem em Islamabad ter recebido relatos vindos de Herat, no sul do país, de recrutamentos forçados de jovens pelo Taleban, para lutar na “jihad”, a guerra santa. O jornal Pakistan Observer informou que o regime afegão está pedindo que cada família ofereça um combatente ou miliciano.

De acordo com o jornal, as famílias têm imposto três condições para cooperar: ficar com o que sobrar da munição dada pelo governo, não ter de lutar fora do território afegão e receber permissão para voltar a cultivar papoula, a matéria-prima da heroína. 

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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