Relação entre drogas e terror desafia governo

Departamento Anti-Narcóticos diz ter provas de vinculação entre al-Qaeda e indústria do ópio, que rende US$ 1,3 bilhão ao ano 

CABUL – No longo prazo, o apoio da comunidade internacional ao Afeganistão depende de seu êxito no combate ao narcotráfico. A pasta de ópio produzida no Afeganistão responde por 75% da matéria-prima da heroína consumida no mundo. O cultivo da papoula – da qual é extraído o ópio – está presente em 26 de suas 34 províncias. A venda de ópio rende ao Afeganistão US$ 1,3 bilhão por ano. Sem contar as drogas, a renda per capita do país é de US$ 199; considerando-as, ela salta para US$ 240.

De acordo com Mirwais Yasini, diretor-geral do Departamento Anti-Narcóticos do governo afegão, o cultivo da papoula aumentou consideravelmente em 2003, embora a produção tenha caído, por causa da seca. “É muito difícil erradicar”, reconhece Yasini, cujo programa é patrocinado pela Grã-Bretanha e os EUA, que, juntos, já investiram US$ 240 milhões.

Em média, numa boa estação, um jirib, que equivale a um quinto de hectare, produz 14 quilos de ópio, hoje vendido a US$ 100 o quilo. Sete quilos de pasta de ópio produzem um quilo de morfina ou de heroína.

No leste do Afeganistão, 20 laboratórios de refino de heroína foram destruídos e 18 toneladas de pasta de ópio, apreendidas. O objetivo este ano é erradicar 25% do cultivo e, até 2011, chegar à eliminação total. “Estamos dizendo aos agricultores que cultivar papoula e haxixe é crime”, diz Yasini, que foi vice-presidente da chamada Loya Jirga Constituinte, a assembléia formada por líderes tribais que promulgou a Constituição afegã.

A mensagem ainda não chegou ao vilarejo de Bam Khel, cerca de 60 quilômetros ao sul de Jalalabad. “Estamos muito felizes com o fim do Taleban, porque eles tinham proibido o cultivo da papoula”, conta Sardar Wali, em sua lavoura de haxixe. “Agora, podemos trabalhar livremente.” Dez agricultores das redondezas, que vieram atraídos pelo carro da reportagem, acenam, em concordância. Segundo eles, os taleban os espancavam e cortavam os talos das papoulas, quando flagravam o cultivo ilícito.

A papoula é plantada em fevereiro. Em junho, a flor é raspada, extraindo um líquido que seca em três dias, transformando-se na pasta de ópio. No resto do ano, a terra é aproveitada para o haxixe – que nem os taleban proibiram – e os cultivos convencionais, como milho, amendoim, cana-de-açúcar, arroz, algodão, hortaliças, etc. Segundo Wali, sua gleba, cerca de 1 jirib, rende 12 quilos de ópio por ano.

Os agricultores da região vendem o quilo da pasta por 10 mil rúpias paquistanesas (US$ 182) para compradores de Jalalabad. Assim, uma safra rende 120 mil rúpias (US$ 2.184). Sua plantação de haxixe produz 2 quilos de fumo, vendidos por 5 a 6 mil rúpias. Todo o restante que ele consegue produzir em cultivos lícitos em um ano lhe rende 2 mil rúpias.

E se o governo resolver proibi-los de cultivar papoula e haxixe, o que eles vão fazer? “O que você faria?” rebatem os agricultores. Os dez dizem que votaram em Karzai.

Yasini, o diretor antinarcóticos, afirma que a polícia já tem provas de ligação entre o narcotráfico e o terrorismo. “Prendemos um peixe grande da época do regime taleban”, conta Yasini. “Nós o procurávamos, junto com outros comparsas, por narcotráfico, mas descobrimos que estavam operando junto com os taleban e a al-Qaeda.”

Yasini afirma que o mulá Mohammed Omar, líder dos taleban, era patrocinado pela venda de ópio. “O Taleban baniu o cultivo de papoula em 1999. Pois bem. O quilo da pasta de ópio subiu de US$ 50 para US$ 850”, lembra ele, sugerindo que foi uma manobra para aumentar a receita.

Com as próprias pernas – Se pretende combater as drogas e dispensar sua receita fácil, o Afeganistão terá de se estruturar para isso. A USAid contratou a empresa Bearing Point, antiga KPMG, para ajudar o governo afegão na reestruturação dos ministérios. A prioridade é a área financeira. No ano passado, a meta de US$ 200 milhões em receita própria foi atingida. Este ano, é de US$ 300 milhões – 85% provenientes de tarifas alfandegárias. “O Afeganistão precisa levantar recursos próprios”, diz Patrick Fine, diretor da USAid no país. “Nossa estratégia é de cinco anos. Queremos que depois disso os afegãos possam andar com as próprias pernas.”

Segundo Fine, os fiscais, que ganharam da USAid cinco automóveis para fazer batidas, estão confiscando de 15 a 25 cargas de contrabando por dia, vinda do Paquistão, Irã e Usbequistão. Ao todo, serão doados 65 carros, para formar unidades móveis de combate ao contrabando.

A capacidade de cobrar taxas – como ocorre historicamente em qualquer lugar – tem sido uma das grandes manifestações do poder no Afeganistão. Antes da ascensão dos taleban, no período da guerra civil, o país estava loteado entre sete grandes grupos mujaheddin e outros tantos grupos armados locais, que mantinham postos de bloqueio para cobrar pedágios dos que precisavam passar.

Um trajeto de algumas dezenas de quilômetros, na província de Kandahar, chegou a ter cinco pedágios. A circulação pelo país se tornou inviável. Esse foi o principal motivo que levou o Paquistão – que tem no Afeganistão um mercado para seus produtos e rota para a Ásia Central – a apoiar os taleban.

Com a queda dos taleban, a fragmentação do poder volta a assombrar o Afeganistão. Até meados deste ano, o então governador de Herat (oeste), o comandante mujahed Ismael Khan, vinha retendo a maior parte dos impostos de importação cobrados nas fronteiras com o Irã e o Turcomenistão, entregando uma pequena parte para o governo central.

Khan, que lidera o grupo ao qual pertencem o ministro da Defesa, marechal Mohammed Fahim Khan, e o comandante do Exército, Bismullah Khan, é considerado o segundo homem mais poderoso do país. Foi um teste para a autoridade de Karzai, que finalmente o substituiu. “Os afegãos gostam de governantes fortes”, diz Richard Christenson, número 2 da embaixada americana em Cabul. “E, quer saber? Nós também gostamos.”

Karzai, o único líder tribal que nunca teve um exército próprio, e cuja fama de conciliador tem sido encarada com ambigüidade pelos afegãos, conduz o Afeganistão por uma transição delicada, na qual o Exército nacional em formação convive com duas outras forças armadas – os milicianos subordinados ao Ministério da Defesa, mas ainda não incorporados ao efetivo regular, e os grupos mujaheddin. Além, é claro, dos insurgentes: taleban, Al-Qaeda e o grupo de Gulbuddin Hekmatyar, que se uniram contra o governo.

O Ministério da Defesa tem 100 mil militares em sua folha de pagamento. Mas só 25 mil foram identificados pelo programa de desarmamento conduzido pela ONU. Desses, pouco mais da metade foi desarmada e incorporada ao novo Exército ou participa de programas de reintegração à sociedade, financiados pelo Japão, que investe US$ 100 por homem desarmado em projetos escolhidos pela sua comunidade. Os japoneses já destinaram US$ 740 milhões ao programa.

Entre os grupos que não se subordinaram ainda ao governo está o do general usbeque Rashid Dostum, candidato a presidente, que participou do boicote da eleição, dia 9, alegando fraudes, junto com outros 14 candidatos da oposição.

Entretanto, na semana passada, Dostum veio a Cabul e negociou o apoio ao resultado de uma investigação que está sendo feita pelo Comitê Eleitoral Conjunto, formado pela ONU e o governo. Com isso, reforçou as análises otimistas segundo as quais tem buscado apenas uma posição de força para barganhar politicamente.

Mesmo entre os grupos armados que já se incorporaram ao Exército, como o do próprio comandante Bismullah Khan, ligado ao candidato presidencial tajique Yunas Qanuni, as divisões ainda são visíveis. Todos sabem que o Forte de Bala-e-Hisar, sobre uma montanha a sudeste de Cabul que domina estrategicamente a cidade, é base da milícia do ministro da Defesa, Fahim Khan. Por dentro das fardas do Exército e da polícia nacionais, pulsam as lealdades dos ex-mujaheddin a seus ex-comandantes.

Os pashtuns contam que, depois de criar o mundo, Deus resolveu fazer o Afeganistão com as pedras que sobraram. Muitas delas estão agora no caminho de Karzai. 

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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