Nova China: chances e riscos

Em meio às novas oportunidades, uma melancolia pela perda de um passado de igualdade e harmonia

PEQUIM – O alojamento estudantil da Universidade de Correios e Telecomunicações de Pequim se parece com um outro qualquer: paredes manchadas, móveis gastos, livros empilhados, roupas penduradas nas janelas. A diferença está na perspectiva de seus moradores. Num dos quartos de 5 metros de comprimento por 2,5 de largura, os oito estudantes que dormem apinhados nos quatro beliches – dois de cada lado – têm emprego garantido ao saírem daqui.

Lei Zhiwen, de 24 anos, trabalhou seis meses na Nokia depois de se graduar. Agora, está voltando para a universidade, para fazer um mestrado. “Quero me aprimorar profissionalmente para chegar mais longe”, sorri Lei. “É muito fácil conseguir emprego na nossa área, mas para ter algo realmente bom é preciso dedicar-se.” O salário inicial numa companhia de tecnologia da informação está na casa dos 4 mil yuans (US$ 500), um bom ordenado para os padrões chineses. São comuns, nessa área, salários de 10 mil yuans – uma pequena fortuna mesmo em Pequim e Xangai, onde é possível alugar um apartamento de dois quartos por mil yuans.

Zhiang Li, de 23 anos, está indo fazer seu mestrado na Chalmers University of Technology, em Göteborg, na Suécia. “Quero me profissionalizar e me internacionalizar”, explica Zhiang, que depois do curso de um ano e meio pretende voltar para Pequim, casar-se com sua namorada, que também estuda telecomunicações e tem emprego prometido num banco, e ter dois filhos – como são da minoria manchu, eles não estão sob o limite de um filho por casal, imposto à etnia han.

Lei, Zhiang e seus colegas estão no epicentro do estrondoso crescimento econômico da China, impulsionado por investimentos externos e internos em tecnologia de ponta, combinados com uma mão de obra barata e crescentemente qualificada. A concorrência para ingressar nessa faculdade, um centro de excelência, é brutal, e eles contam com a ajuda dos pais para comprar seus computadores e pagar a anuidade de 5.500 yuans – as universidades e escolas estatais não gratuitas, embora haja bolsas de estudos e crédito educativo para quem não pode pagar.

O crescimento vertiginoso, a modernização e a introdução da lógica do mercado estão desfigurando a China e mudando drasticamente a vida dos chineses. “Nossos pais não se importavam com aparência, viviam em casas simples, e poupavam o que ganhavam”, diz uma moça de 21 anos que trabalha como vendedora numa livraria. “Agora, quando não têm dinheiro, as pessoas pegam emprestado no banco para comprar casas, carros e artigos de luxo.”

Talvez a melhor imagem da transformação esteja no trânsito de Pequim, caótico desde sempre. Antes, as bicicletas se impunham como maioria. Hoje, nos engarrafamentos, os carros invadem as largas ciclovias e empurram as bicicletas para o meio-fio – como se a nova China capitalista atropelasse a velha China comunista.

“Antes, as pessoas não tinham dinheiro no bolso, adquiriam tudo com tíquetes do governo, mas a vida era tranqüila e elas eram felizes”, diz Donna Wang, de 40 anos, encarregada da área de responsabilidade corporativa da companhia americana de energia Conoco Phillips. “Hoje em dia, nem todos estão felizes. Eu estou entre as pessoas de sorte, que seguem a maré. Mas o grupo dos que estão de fora está crescendo.”

Em todos os chineses com que se conversa, tanto os jovens quanto os mais velhos, é muito forte a visão melancólica de uma China pobre porém tranqüila e harmoniosa no passado, em contraste com uma vida nova cheia de oportunidades mas também de riscos. “Na minha infância, as pessoas eram pobres, mas compartilhavam as coisas”, lembra Li Shuangjin, um eletromecânico aposentado de 64 anos. “Naquele tempo, tudo era programado pelo governo. Agora, a sociedade já não é mais tão estável e pacífica. E ninguém se importa com os outros.”

“Na época dos meus pais, quando se saía da universidade, havia um emprego garantido pelo governo”, compara um estudante. “Mesmo que não fosse o que a pessoa queria, era obrigada a fazer o que fosse designado. Agora, é preciso lutar para conseguir algo, mas, pelo menos, é possível fazer o que se quer.” Entre os mais jovens, no balanço entre a velha e a nova China, costuma aparecer a palavra ziyou – liberdade -, como o que faz com que todo o stress dos dias atuais valham a pena.

“Antigamente, a China estava fechada e eu não poderia fazer o que faço hoje”, diz uma vendedora ambulante de 38 anos, na Praça da Paz Celestial, cenário da repressão ao movimento pró-democracia de 1989. A mulher, que ganha cerca mil yuans por mês vendendo souvenirs aos turistas, incluindo livros de citações de Mao Tsé-tung, garante que as idéias do líder da Revolução Comunista (1949) continuam muito valiosas, embora não saiba citar um exemplo.

A liberdade está restrita ao âmbito das aspirações pessoais. “Na China, se você não contesta nada, tudo bem”, diz um estudante. “Mas se você entrar em conflito com o governo, terá sérios problemas. Aqui, o governo controla tudo, e quem tem poder e dinheiro está sempre certo.” As reformas econômicas rumo a uma economia de mercado, introduzidas a partir de 1978, não incluíram a abertura política. O regime continua sendo de partido único, com o banimento da oposição e a censura da imprensa.

Entretanto, a classe média chinesa tende a tolerar a ausência de democracia. “Todo mundo tem queixas, mas, quando penso o quanto deve ser difícil governar um país de 1,3 bilhão de habitantes, não me queixo de nada”, diz o consultor de empresas Ray Wang, de 36 anos. “O sucesso da economia chinesa está vinculado à existência do partido único, que facilita a tomada de decisões.” Diante da necessidade de gerar empregos e renda num país dessas proporções, diz Wang, “a questão dos direitos humanos fica em segundo plano”.

As dimensões da China são um argumento freqüente contra a introdução de uma democracia ao estilo ocidental. A imprensa patrocinada pelo governo noticia generosamente percalços dos regimes democráticos, como os problemas de contagem de votos na eleição do presidente George W. Bush, em 2000, ou as denúncias de fraude na reeleição, em março, de Chen Shui-bian, de Taiwan, que venceu por apenas 30 mil votos, depois de um mal explicado atentado de que teria sido vítima.

“Na Europa, nos Estados Unidos e em Taiwan, os candidatos conquistam os eleitores com dinheiro. Não há uma forma pura de democracia”, critica uma professora de eletrônica aposentada, que se identificou apenas como Fu. “Aqui, tudo é feito de forma gradual”, disse ela, usando uma das expressões mais comuns na política chinesa: yibu yibu delai (passo a passo). “É por isso que somos um país tão estável.”

A tolerância com a ditadura parece estreitamente vinculada a seu êxito no campo econômico. “As coisas estão indo bem”, diz um estudante. “Se começar a haver problemas, podemos aspirar por mudanças, Mas, no momento, está dando certo.” Outro jovem completa: “Desde que a vida esteja tranqüila e a economia crescendo, tanto faz o sistema.” Não que nunca deva haver mudanças. “O sistema chinês já mudou várias vezes, o que significa que deverá continuar mudando no futuro.”

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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