Tradição e leis em conflito

O engenheiro Chen Ying tinha duas filhas, uma de 13 e outra de 11 anos, quando decidiu tentar de novo.

CHENGDU, China – Ele e a mulher, professora de chinês, sabiam que perderiam o emprego por exceder a quota de dois filhos por casal, imposta no meio rural (na cidade, é de um filho). Mas Chen, mesmo com curso superior, sentia-se culpado de não ter um filho homem para transmitir seu sobrenome à geração seguinte, e teria vergonha de falar com seus antepassados, quando morresse.

Chen teve uma terceira filha, Yan. Hoje com 24 anos, ela conta que seus pais cortavam o seu cabelo curto e a tratavam como um garoto. Por causa dela, seu pai e sua mãe efetivamente perderam seus empregos públicos, e tiveram de ir trabalhar no campo, no interior da província de Hunan, sudeste da China. A família foi condenada à pobreza pela decisão de Chen de tentar ter um filho. Até 1988 não havia energia elétrica em sua casa, iluminada por lamparina a querosene. A primeira televisão foi adquirida em 1998.

Sendo terceira filha, era “ilegal”, e não teve documentos até os dez anos, quando seus pais pagaram uma taxa para “legalizá-la”. A multa varia de lugar para lugar. Os pais da guia turística Milai,da etnia uigur, de 24 anos, tiveram de pagar 10 mil iuanes (US$ 1.430) pelos dois filhos extras que tiveram. Por serem minoria, eles podem ter dois filhos na cidade e três no campo. Para matricular Yan na escola pública, aos sete anos, Chen teve que pagar a mais.

Quando cada uma de suas duas filhas mais velhas chegaram à idade de casar, Chen pediu aos futuros genros, ambos com irmão homem, que colocassem o sobrenome dele nos filhos, já que a transmissão do nome de suas famílias estava assegurada. Ambos recusaram, considerando a oferta um insulto.

Uma sobrinha de Chen não pode ter filhos, e “comprou”, há três anos, uma garota de dois meses num vilarejo de Hunan, pagando aos pais também 10 mil iuanes. Assim como Chen, os pais da garota tiveram uma terceira filha mulher, na tentativa de ter um filho homem. Os dois casais assinaram um contrato, pelo qual os pais biológicos se comprometeram a nunca revelar a sua paternidade. O pai adotivo é secretário da prefeitura em sua cidade, e a família é considerada “rica” para os padrões locais. Sendo instruídos, não se importam de ter uma filha do sexo feminino. E, de qualquer forma, um filho homem seria muito difícil de “comprar”, mesmo de uma família muito pobre.

Na época da Revolução Cultural, entre 1966 e 1976, o líder Mao Tsetung encorajava as chinesas a terem muitos filhos. Eram chamadas de “yingxiong muqin” (mães-heroínas). A política de um filho foi adotada abruptamente menos de uma década depois, no início dos anos 80, variando o ano de acordo com a região.É apenas um exemplo do conflito entre as tradições e as leis chinesas. Há outros.

Uma lei chinesa obriga a cremar os mortos nas cidades, por falta de áreas disponíveis. Pela tradição, se o corpo não é enterrado, a alma vaga, errante, sem repouso. Na zona rural, os enterros ainda são permitidos. Mas o ritmo frenético da urbanização significa que cada vez mais chineses têm de abandonar suas crenças.

Em vez de transição geracional, o que se vive aqui é uma transformação drástica de valores, no período de uma vida. O novo valor supremo a guiar muitos chineses foi enunciado pelo reformista Deng Xiaoping, o sucessor de Mao, quando autorizou: “Ficar rico é glorioso.”

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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