Na índia, o fim da barafunda?

NARENDRA MODI: primeiro-ministro da Índia adotou projeto de simplificação fiscal como uma de suas principais bandeiras/ Kevin Frayer/ Getty Images

Lourival Sant’Anna

Federação de dimensão continental formada por 29 Estados, assolada pelo atraso, pela burocracia e pelas desigualdades sociais, a Índia tem algumas semelhanças com o Brasil. Uma delas é o seu caótico, enigmático e ineficiente sistema tributário. No ranking de 189 países do Banco Mundial de facilidade de pagar impostos, a Índia ocupa a posição 157 e o Brasil, 178. Ou seja, com muito esforço e talento, conseguimos superar os indianos em complexidade tributária. Mas nossas preocupações acabaram: o Brasil não sofrerá mais essa concorrência. A Lok Sabha, Câmara dos Deputados indiana, aprovou nessa segunda-feira, 8, a criação do Imposto sobre Bens e Serviços (GST), que unificará as alíquotas de todos os Estados e produtos, simplificando e racionalizando o sistema, e criando um mercado comum de 1,3 bilhão de consumidores.

A proposta foi apresentada há 13 anos, e sofreu a oposição de vários governadores, incluindo Narendra Modi, que administrou o Estado de Gujarat até 2014, quando se elegeu primeiro-ministro. Depois de saltar o balcão do âmbito estadual para o federal, Modi, com a desenvoltura dos políticos para esquecer o passado e mudar de lado, transformou o projeto em uma de suas grandes bandeiras. E ainda diz que usou sua experiência como governador para melhorar o projeto, e que ele é resultado de consultas a todos os Estados e partidos.

A aprovação é de longe a maior proeza de Modi, uma das mais importantes reformas desde que o país abriu sua economia, há 25 anos, e a mexida mais radical no regime tributário, criado na independência em relação à Grã-Bretanha, em 1947. Além de uma importante modernização econômica, foi um extraordinário feito político vencer a resistência de 90 partidos regionais. Um comitê de secretários da Fazenda de alguns desses Estados ajudou o governo federal a vencer as resistências das bancadas estaduais no Rajya Sabha, o Senado indiano. O projeto acabou aprovado por todos os 443 deputados presentes à sessão. Apenas o partido AIADMK discordou, e se retirou do Senado, em protesto, afirmando que as condições apresentadas pelo Estado de Tamil Nadu, sua base, não tinham sido contempladas.

O projeto já tinha sido aprovado na Câmara em maio do ano passado. O Senado o aprovou com modificações no dia 3, e por isso ele teve de passar de novo pela Câmara. A alíquota única será definida pelo novo Conselho do GST, composto por representantes dos governos estaduais e federal. A equipe econômica de Modi defende uma alíquota entre 17% e 18%. Alguns Estados preferem que seja mais alta.

O GST será cobrado no destino, e não mais na fonte, como acontece hoje, o que favorecerá os Estados consumidores, mais pobres, em detrimento dos industrializados. Durante cinco anos, esses Estados serão indenizados pelas perdas de arrecadação. Depois disso, cada um com seus problemas. O deputado Munisamy Thambidurai, líder do AIADMK e vice-presidente da Câmara, reivindicava que esse prazo fosse mais longo. Seu Estado, Tamil Nadu, é grande produtor de têxteis, peças para automóveis e produtos agrícolas.

O ministro da Fazenda, Arun Jaitley, argumentou que mesmo os Estados industrializados, como Maharashtra, Gujarat e Tamil Nadu, ganharão com o recolhimento de impostos sobre os serviços. Para ele, essa reação é causada pelo “medo do desconhecido”. Jaitley garantiu que o novo imposto será um “ganha-ganha” tanto para a União quanto para os Estados: “O GST ampliará a base tributária, cobrirá brechas e aumentará a arrecadação”.

Assim como ocorre no Brasil, os impostos na Índia também incidem em cascata sobre os diversos elos da cadeia de produção. O GST acaba com isso. Cada empresário pagará apenas pelo valor por ele adicionado. Para pagar menos imposto, deverá declarar o valor pago por matérias-primas, insumos e componentes usados na sua produção. Com isso, segmentos inteiros da economia que até agora sonegam aparecerão no radar do Fisco.

A simplificação do imposto único também será brutal. Para se ter uma ideia, existem seis alíquotas diferentes sobre a venda de automóveis, por exemplo, dependendo do comprimento do veículo, potência do motor, etc.

“É o fim do terrorismo tributário”, sentenciou o primeiro-ministro. “O consumidor será o rei”, festejou Modi, referindo-se ao fato de que as notas fiscais discriminarão claramente o que é imposto e o que é preço da mercadoria — como ocorre nos países civilizados.

No Brasil, essa obrigação está prevista na lei 12.741/12. Sua entrada em vigor foi adiada de junho de 2013 para junho de 2014 e depois para janeiro de 2015, a pedido da classe empresarial. Até que se esqueceu o assunto e ela entrou para a longa lista das leis que não pegam, embora esteja prevista multa pelo descumprimento.

A reforma ainda precisa ser aprovada pelas assembleias legislativas de pelo menos metade dos 29 Estados, mas o governo acredita que não haverá problemas. Entretanto, como esse processo costuma ser lento, talvez o GST não entre em vigor em abril, quando começa o ano fiscal na Índia, como pretendia o governo.

A mudança tem apoio de economistas e tributaristas. O contador Rahul Grover, da consultoria Dezan Shira & Associates, enumera os benefícios do GST:  “Vai ampliar a base tributária, condição para diminuir as alíquotas e eliminar as disputas sobre classificação de produtos; eliminar a multiplicidade de impostos e seus efeitos-cascata; equalizar a estrutura tributária e simplificar os procedimentos de compliance; harmonizar as administrações tributárias dos governos central e estaduais, reduzindo os custos de duplicação e compliance; cobrar o imposto no destino no caso de trânsito entre os Estados, tributar as importações e zerar a alíquota sobre exportações”.

Quando apresentou o projeto no Parlamento, no dia 24 de abril de 2015, o ministro da Fazenda previu que o GST causaria um incremento de 2% do PIB indiano. Economistas independentes calculam que esse índice possa ficar entre 1% e 2% ao ano.

Na votação do projeto na Câmara, Modi agradeceu “humildemente” a todos os partidos pelo seu apoio ao GST. Disse que ele reflete a “maturidade” da democracia indiana, ao ser aprovado por consenso entre os partidos. “É um grande passo da seleção Índia”, celebrou o primeiro-ministro. “Agora, somos um país, um imposto.”

Que inveja. Se os indianos, com suas 22 línguas oficiais, 122 grandes idiomas, 1.599 dialetos e 90 partidos regionais conseguiram se entender sobre a forma mais inteligente de cobrar imposto sobre valor adicionado, os brasileiros bem que poderiam tentar.

Publicado no app EXAME Hoje. Copyright: Grupo Abril. Todos os direitos reservados.

Deixe o seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*