Para Nova Délhi, eleição afegã é avanço

Índia se preocupa menos com resultado da votação e mais com o Taleban e a influência paquistanesa

NOVA DÉLHI – Quem quer que ganhe a eleição presidencial afegã, a Índia terá um governo amigável em Cabul. O presidente Hamid Karzai desenvolveu uma sólida proximidade com o governo de Nova Délhi, expressa na ajuda indiana de US$ 1,2 bilhão ao Afeganistão desde a queda do Taleban, em 2001. Seu principal adversário, o ex-chanceler Abdullah Abdullah, foi assessor do general Ahmed Shah Massud na Aliança do Norte, apoiada pela Índia, e mandou a família para Nova Délhi no período da resistência ao Taleban (1996-2001).

Para os indianos, a verdadeira guerra trava-se entre o Estado afegão e o Taleban, criado e apoiado pelo Exército e pelo serviço secreto paquistaneses. Mesmo enfrentando em seu território a versão paquistanesa do Taleban, o establishment de segurança paquistanês continua insuflando o conflito no Afeganistão, como tem feito pelo menos desde a invasão do país pela antiga União Soviética, há 30 anos.

O Paquistão considera o Afeganistão vital para seus interesses nacionais, proporcionando-lhe “profundidade estratégica” em face da Índia, seu principal rival. Com seu território pequeno em comparação com o da Índia, o Paquistão deseja poder contar com o Afeganistão para eventualmente estacionar tropas e armamento e, numa guerra menos simétrica, como tem sido o caso, abrigar e treinar militantes islâmicos para atacar seu inimigo. Nada disso mudou, nem com a ameaça do Taleban paquistanês ao governo de Islamabad nem com a eleição do presidente Barack Obama, dizem especialistas indianos.

“O Paquistão não aprendeu nada com o conflito no Vale do Swat”, diz o embaixador aposentado Gopalaswami Parthasarathy, professor do Centro para Pesquisa de Políticas, de Nova Délhi. “Ele está confrontando exclusivamente o Taleban que o enfrenta, não o mulá Mohammed Omar, Gulbuddin Hekmatyar ou Jalaluddin Haqqani”, afirma, referindo-se ao líder do Taleban e a dois chefes de milícias insurgentes no Afeganistão. “Não vejo nenhuma mudança no Paquistão.”

Para Shanthie D’Souza, pesquisadora do Instituto de Estudos e Análises de Defesa (sustentado pelo Ministério da Defesa), o conflito com o Taleban no Paquistão reforçou a posição do establishment de segurança, o mesmo que insufla os insurgentes no Afeganistão. “No Vale do Swat, os militares assumiram uma posição de força ao enfrentar os insurgentes”, analisa Shanthie D’Souza (cujo sobrenome provém de M’lore, ex-colônia portuguesa). “A influência do Exército está crescendo.”

 

MOEDA DE TROCA

O governo civil do Paquistão não consegue domar seu aparato de segurança. “(O presidente Asif Ali) Zardari odeia o Taleban”, diz Parthasarathy, que serviu duas vezes no Paquistão, como diplomata. Visão semelhante foi expressa pelo assessor-chefe do Ministério das Relações Exteriores do Afeganistão, Davood Moradian, em entrevista ao Estado, publicada no dia 23. “O problema é que o Exército e o serviço secreto paquistaneses pensam que o terrorismo é uma boa moeda de troca contra a Índia, contra o Afeganistão e contra a comunidade internacional”, disse Moradian, em Cabul. “O governo civil tem alguma legitimidade política, mas não poderes institucionais. As decisões de Estado importantes são tomadas pelo establishment militar e de inteligência, para o qual o terrorismo é um negócio muito vantajoso.”

“O governo civil não vai se impor sobre o establishment de segurança tão cedo”, descarta Parthasarathy. A geração de militares que participou da criação do Taleban, no início dos anos 90, está chegando agora à patente de general, observa o diplomata indiano. “O Exército será muito mais islâmico do que antes. É um grande desafio para os americanos.”

Obama não é muito bem visto na Índia. Ele foi o político americano que mais opôs objeções ao acordo nuclear com a Índia, aprovado pelo Senado dos EUA em outubro e sancionado pelo então presidente George W. Bush. Além disso, Obama tem diferenças com o governo indiano em relação às políticas contra a mudança climática – a Índia, como o Brasil e a China, defende o direito de países emergentes de poluir – e à transferência de empregos dos EUA para o país, que tem mão de obra barata e qualificada.

A escolha de Richard Holbrooke como enviado especial dos EUA para o Afeganistão e o Paquistão também motivou preocupações na Índia, por causa de sua posição em relação ao conflito da Caxemira, vista pelos indianos como pró-paquistanesa. “Bush havia redefinido as relações em detrimento do Paquistão e em favor da Índia”, recorda Shanthie. “A tendência de Obama a uma retirada prematura provoca temores de concessões que prejudicariam a estabilidade do Afeganistão no longo prazo. Karzai está tentando há oito anos, e ainda está no estágio de gerência de crise.”

“Não vejo solução rápida”, concorda Parthasarathy. “Será necessária uma década para ter alguma estabilidade no Afeganistão, e duas para alguma normalidade.” Mas a questão é mais complexa que isso, porque envolve o fomento, pelos paquistaneses, de grupos terroristas no Afeganistão. “Mudar a natureza do Estado paquistanês não é questão de anos”, diz ele.

Enquanto isso, a Índia consolida silenciosamente sua influência sobre o Afeganistão: construindo estradas, pontes, redes de comunicação, casas, telhados, placas de energia solar e outros confortos para melhorar a vida dos afegãos na zona rural. Embora procurem mostrar-se afastados da política interna afegã, os indianos dão importância à “construção do regime” em marcha, e consideram a eleição um passo positivo, apesar das inúmeras evidências de fraudes.

“Estamos cercados por Estados falidos: Mianmar, Bangladesh, Paquistão e Afeganistão”, enumera Shanthie. “A Índia quer sair desse centro.” Ela pondera que, “mesmo que as eleições pareçam fraudulentas para os padrões ocidentais, isso é normal nesta parte do mundo e em situações de conflito”. Parthasarathy arremata: “Não se pode governar o Afeganistão como se governa o Brasil.”

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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