‘Dia da Solidariedade’ só confirma dilema

Ambigüidade do título de evento de apoio à coalizão leva às ruas partidários dos afegãos

ISLAMABAD – Sob o sol impiedoso do fim de verão em Islamabad, o afegão Ruslan Khan, de 17 anos, faz uma algazarra com seus colegas paquistaneses de escola, no meio da larga avenida fechada para as celebrações do Dia da Solidariedade. Ruslan, assim como seu amigo Saadat Ullah Niazi, ambos estudantes do Colégio Moderno de Moços de Islamabad, veio manifestar seu apoio aos afegãos e seu repúdio a um eventual ataque dos EUA – embora lamentem a morte dos americanos nos atentados do dia 11.

A ambigüidade do título dado pelo presidente Pervez Musharraf à celebração de ontem serviu para que muitas pessoas fossem expressar solidariedade aos seus irmãos afegãos – até porque o contrário lhes pareceria impensável.

“Nossa solidariedade é com os afegãos”, disse Saadat, sob os gritos de aprovação dos 20 colegas que fizeram um círculo em torno do repórter, perguntando se ele conhecia Pelé.

A manifestação, na qual o general-presidente pretendia demonstrar o apoio popular a sua decisão – alvo de uma torrente de protestos no país – foi um pouco fria, reunindo basicamente estudantes e integrantes de grupos que apóiam o governo. “Escreva aí: apoiamos plenamente o governo”, pediu Tahira Latif, vice-presidente da Liga de Mulheres do Afeganistão.

“Vim porque quero celebrar a solidariedade”, explicou em pausado inglês a menina Zaina Batool, de 7 anos, do Colégio Opief. “Queremos mostrar ao mundo que somos um só”, continuou Janita Zafar, de 8 anos, observada de perto pela diretora da escola, que completava algumas palavras das frases obviamente decoradas na sala de aula.

Em seu auge, a manifestação, em frente ao Parlamento fechado desde o golpe de outubro de 1999, reuniu cerca de 7 mil pessoas – a metade do que costumam reunir os protestos contra o governo realizados em Peshawar, o reduto da etnia pashtum (maioria no Afeganistão), no noroeste do Paquistão. O chanceler Abdul Sattar discursou, dizendo que seu governo não é contra o regime do Taleban. “Mas este é o momento de cooperar com os países aliados na luta contra o terror. Tentaremos também fazer com que os aliados não ataquem a gente inocente do Afeganistão.”

Participaram a moderada Liga Muçulmana, que se opõe ao regime militar, mas respalda a posição assumida por Musharraf no que se refere ao Afeganistão, o Partido Popular do Paquistão, que apóia o presidente, e entidades representantes da classe empresarial. Desde quarta-feira, a região central de Islamabad estava tomada de faixas da Câmara de Comércio e Indústria com dizeres do tipo: “Forte, firme e seguro, o Paquistão vem em primeiro lugar”; “Nosso país, nossa prioridade”; e “Unidade, fé, disciplina”.

Durante todo o dia, a televisão estatal PTV veiculou mensagens nacionalistas, mostrando a imagem do chamado pai da nação, Quaid-e-Azam Mohammad Ali Jinnah, fundador do Paquistão, em 1947. O alicerce da criação de um Estado separado da Índia no Subcontinente Asiático foi a sua identidade muçulmana. É com o significado dessa identidade que os paquistaneses se defrontam nesse momento decisivo para o país: deve o Paquistão se colocar ao lado de seus irmãos muçulmanos do Afeganistão ou resguardar a integridade e sobrevivência do próprio país, ameaçada se tomasse o rumo de um confronto com a coalizão liderada pelos Estados Unidos?

Diante desse dilema, o apelo de ontem foi essencialmente pela unidade do país. “Não somos punjabis, sindhis, pashtuns ou baluchis”, entoou ontem um cantor, citando as quatro etnias do país, durante a manifestação em Karachi, que reuniu cerca de 2 mil pessoas. “Somos paquistaneses.” Referindo-se aos perigos de se colocarem do lado errado, o prefeito de Karachi, Naimatullah Khan, disse em seu discurso, transmitido ao vivo pela PTV: “Vamos dizer à Índia que não pense que não estamos unidos. Vamos mostrar para o mundo que somos um país pacífico, que não somos amigos dos terroristas.”

O prefeito lembrou a guerra de 1965 (um dos três conflitos com a Índia), “que o Paquistão venceu porque se mostrou unido”. Citando o pronunciamento de Musharraf à nação, há uma semana, o prefeito acrescentou: “Primeiro, vamos cuidar do nosso país. Depois, dos outros. A situação atual exige solidariedade, não politicagem. Temos de salvar nosso país dos inimigos.”

Quem são esses inimigos – além da Índia – e para quem deve se destinar a solidariedade? É justamente sobre isso que os paquistaneses não conseguem se pôr de acordo.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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