Espanha: os dogmas falam mais alto

RAJOY (PP) E PEDRO SÁNCHEZ (PSOE): os líderes parecem apreciar mais suas posições do que o bem comum do país/ Andrea Comas/ Reuters

Lourival Sant’Anna

A partir desta segunda-feira, 8, todos os gastos não-obrigatórios do governo espanhol estão suspensos. O país não conseguiu cumprir o compromisso de baixar neste ano o seu déficit público — atualmente em 4,6% — para o patamar exigido pela União Europeia, de 3%. O primeiro-ministro Mariano Rajoy não pode encaminhar um orçamento para o ano que vem, porque está no cargo interinamente. Depois de duas eleições gerais, em dezembro e em junho, o Partido Popular (PP), vitorioso em ambas, não conseguiu formar governo. Esse quadro de paralisia tanto na economia quanto na política resume o drama de um país consumido no seu próprio impasse: os espanhóis simplesmente não conseguem chegar a um consenso mínimo sobre que rumo dar ao país. E os grandes partidos não querem ceder.

Não que a economia espanhola esteja estagnada. O PIB cresceu 3,2% no ano passado. O primeiro e o segundo trimestres deste ano registraram incrementos  de 0,8% e 0,7%, respectivamente, em relação aos trimestres anteriores. O índice de desemprego segue no nível estratosférico de 20,1% — para os menores de 25 anos, dramáticos 45% —, mas está caindo, ainda que lentamente. Mas a questão do gasto público é crítica: mais de 80% do orçamento está comprometido com aposentadorias, salários, seguro-desemprego e pagamento da dívida. Por conta disso, mesmo com o congelamento dos pagamentos não-obrigatórios — que incluem créditos agrícolas, digitalização da Seguridade Social, pesquisas e modernização das Forças Armadas, por exemplo — a economia é pequena, na casa de € 1 bilhão, segundo o governo. Paralisações orçamentárias são comuns na Espanha, mas é a primeira vez que acontece tão cedo, já no meio do ano.

Enquanto isso, Rajoy luta para formar um governo de coalizão. As eleições mostram os espanhóis divididos ao meio entre direita e esquerda. O bipartidarismo entre o PP e o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) deu lugar a um “quadripartidarismo”, com o surgimento, há dois anos, do Podemos, de esquerda, e o crescimento do Cidadãos (criado em 2006), de centro-direita, nas esteira das grandes manifestações contra a desiguladade ocorridas entre 2011 e 2015. Mas os espanhóis continuaram igualmente divididos. Nas eleições de 26 de junho, no campo da direita, o PP obteve 33,03% dos votos e o Cidadãos, 13,05%. Já os votos da esquerda se dividiram entre o PSOE, com 22,06%, e a nova frente Unidos Podemos, à qual se somou a Esquerda Unida, o Equo e outros partidos menores, com 21,05%.

A distribuição dos votos tinha sido a mesma nas eleições de dezembro do ano passado, embora de lá para cá o PP tenha aumentado a sua fatia em mais de 4 pontos: 28,72% para o PP, 22,01% para o PSOE, 20,66% para o Podemos e 13,93 para o Cidadãos. Os outros votos vão para partidos regionais.

No Parlamento de 350 cadeiras, o PP ficou nessa última eleição com 137, o PSOE com 85, o Unidos Podemos com 71 e o Cidadãos, com 32. Aritmeticamente, o caminho mais curto para a formação de maioria seria a chamada “grande coalizão” entre o PP e o PSOE. Mas os socialistas descartaram essa possibilidade na semana passada, apesar de apelos dos ex-primeiros-ministros Felipe González e José Luis Rodríguez Zapatero, ambos do PSOE, para que o partido fizesse um acordo com os adversários do PP. O líder do partido no Parlamento, Antonio Hernando, apontou como razões de sua recusa a corrupção no governo Rajoy, a política econômica e a não-transferência de verbas para as regiões. Rajoy é acusado de ter recebido indevidamente US$ 118.600 do PP entre 1997 e 1999, de acordo com um caixa 2 descoberto no início do ano. O PSOE se negou até a se abster na votação para a formação do governo. A abstenção viabilizaria a formação de um governo sem maioria absoluta.

Em todo caso, Rajoy vai em busca dessa coalizão minoritária. O primeiro-ministro interino deve se reunir novamente nessa quarta-feira, 10, com o líder do Cidadãos, Albert Rivera. Eles se encontraram pela primeira vez na quarta-feira, 3. O Cidadãos já havia anunciado que se absteria na votação de formação do governo, mas Rajoy quer convencer Rivera a votar a favor. Já o líder do Cidadãos diz que o objetivo da reunião é discutir o orçamento de 2017. Sobre a mesa está o estabelecimento de um teto nos gastos do governo. Seguindo uma linha de responsabilidade fiscal, o Cidadãos cobra o cumprimento da meta da União Europeia e acusa o governo do PP de assumir uma posição “eleitoreira” ao cortar impostos antes das eleições e reduzir de 10% para 3% a cobrança de tributos dos beneficiários de uma anistia fiscal.

A União Europeia exige que o governo espanhol entregue um balanço de suas contas até o dia 15 de outubro. O Cidadãos quer ver esses números já.

O Cidadãos só aceita negociar o apoio ao novo governo mediante compromissos de aumentar os impostos cobrados das empresas, impor um teto para os gastos do governo e detalhar o orçamento do ano que vem. “Não daremos cheque em branco, mas seremos construtivos”, disse uma fonte do partido ao jornal El País. Um integrante da equipe econômica do Cidadãos disse que está “cautelosamente otimista”. Há uma sintonia entre o ministro da Economia, Luis de Guindos, e o chefe da equipe econômica do Cidadãos, Luis Garicano, professor da London School of Economics.

Está prevista para esta terça-feira uma reunião do partido, para discutir a aproximação com o PP. A posição inicial do Cidadãos era a de só negociar as questões econômicas com o PP depois que ele formasse governo, já que como interino Rajoy não pode apresentar o orçamento do ano que vem. Mas a recusa do PSOE de endossar o governo do PP tornou a ajuda do Cidadãos para formar o governo imprescindível. Mesmo com o voto favorável do Cidadãos, ainda faltariam 7 votos para os 176 necessários para a aprovação do novo governo em primeiro turno.

Além da política econômica, o Cidadãos e o PP discutem uma estratégia comum para enfrentar o movimento separatista na Catalunha, que voltou a crescer. O Cidadãos propõe um Pacto pela Espanha, que assegura a unidade do país e prevê que mudanças na organização territorial só podem ser feitas mediante reforma constitucional. Rajoy já disse que está disposto a firmar esse pacto. Na reunião anterior, ficou acertado que, uma vez alcançado um compromisso, Rivera teria de tentar convencer o PSOE a se abster na votação para a formação do governo.

Se essas negociações fracassarem, a Espanha partirá para uma impensável terceira eleição geral, em menos de um ano.

Juan Jesús González, cientista político da Universidade Nacional de Educação à Distância, acredita que a solução mais provável seja a abstenção do PSOE. “Agora cabe ao Cidadãos negociar e, dependendo do resultado, o PSOE tomará a decisão final.”

Mas, por que o país vive mergulhado no impasse? “A razão principal é o sistema de partidos resultante da cultura política a ele associada”, diz González. “É um sistema de pluralismo polarizado, no qual os partidos que ocupam os pólos ideológicos — PP, à direita, e Podemos, à esquerda — coincidem na ideia de que não se deve repartir o poder. Ou seja, o que buscam são novas eleições que conduzam a um novo bipartidarismo, com a eliminação dos partidos-dobradiça, o PSOE e o Cidadãos.”

“É verdade que existe certa dificuldade de formar governo na Espanha, mas o jogo de cena é mais problemático do que as questões de fundo”, analisa Fernando Caballero, cientista político da Universidade Carlos 3.º. “Em dezembro houve a possibilidade de compor um governo de centro-esquerda, formado pelo PSOE, com apoio do Cidadãos e a colaboração mediante abstenção do Podemos. Mas o Podemos preferiu especular com a possibilidade de superar eleitoralmente o PSOE e apostou pela convocação de novas eleições. O fracasso nas intenções do Podemos levou à sua marginalização na criação de um novo governo.”

Na primeira votação, diz Caballero, o PSOE deve votar contra o governo do PP. Mas, numa segunda tentativa, “uma vez marcadas as diferenças” entre os dois partidos, o PSOE pode se abster, “apresentando-se à opinião pública como um partido responsável, capaz de se sacrificar sem deixar de ser crítico ao PP ao longo de toda a próxima legislatura”. Ele observa que, no mundo empresarial, o PSOE é pressionado a se manter afastado e crítico ao PP, para não deixar como única alternativa o Podemos, visto como “imprevisível, imaturo e perigosamente esquerdista”.

O analista afirma que o resultado das eleições de junho tornou mais favorável a criação de um governo de centro-direita, com o PP e Cidadãos. “O problema para o Cidadãos é que, se apoiar diretamente o PP, pode ratificar a imagem de chapa branca e prolongação política do PP”, diz Caballero. “Por isso também em uma primeira sessão de investidura pode se abster para realçar suas diferenças e, na segunda, passaria a apoiar o PP com seus votos, mediante negociação do orçamento e de um programa de governo.”

“O PSOE perdeu o poder de liderar porque o Grande Centro, PSOE mais Cidadãos, já debilitado nas eleições de dezembro, enfraqueceu ainda mais no pleito de junho, com 13 deputados a menos: 8 do Cidadãos e 5 do PSOE”, avalia Marcos Sanz Agüero, analista do instituto de pesquisas de opinião Metroscopia, de Madri. “O poder de liderar é hoje quase exclusivo do PP. A dúvida é se terá inteligência e habilidade política para administrá-lo. Precisa fazer renúncias expressas e promessas de reformas convincentes para conseguir a legitimação dos outros atores do sistema, sobretudo o PSOE.”

Sanz Agüero observa que o PP obteve menos de um de cada três votos válidos e um de cada quatro eleitores espanhóis, já que o comparecimento foi de 70%. “O valor político do poder de legitimação impõe nessas circunstâncias um alto preço, e o PP deve saber disso e estar disposto a pagá-lo.”

O duro é que, diferentemente do Brasil, em que muitas vezes se consegue isso distribuindo cargos e verbas, na Espanha os partidos teimam em manter uma coerência doutrinária, o que envolve tanto as questões econômicas quanto o grau de autonomia das regiões.

Mas, como é preciso tornar o país governável, depois de eleições inconclusivas como as de dezembro e de junho, os partidos têm de ser capazes de arredar de seus dogmas, em nome do bem comum. Só que os atuais líderes parecem apreciar mais as suas posições. Para González, a solução de longo prazo para o impasse crônico seria “uma mudança de cultura política, passando pela substituição dos dirigentes dos principais partidos”. Não só na Espanha, claro.

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