Uma cidade dividida pela intolerância

Em Mitrovica, sérvios e albaneses vivem separados por um rio e posições irreconciliáveis sobre a independência de Kosovo

MITROVICA, Kosovo – A estrada estreita que sobe para o bairro de Micronassiliev, na encosta de uma colina, mal dá para um carro passar, mas é de duas mãos. Quando dois carros vêm na direção contrária, um tem que dar ré até encontrar um canto para o outro passar. O bairro era um dos poucos lugares de “população mista” que restavam em Kosovo depois da guerra de 1999, que culminou nos bombardeios da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) contra forças sérvias que começaram combatendo o Exército de Libertação de Kosovo e acabaram engajadas numa “limpeza étnica”.

Depois da proclamação da independência, domingo passado, quando se pergunta pelos albaneses em Micronassiliev, os sérvios apontam para casas fechadas e vazias. No alto da montanha, o silêncio é entrecortado pelos rádios dos soldados portugueses, que patrulham o norte de Mitrovica, onde se concentra a minoria sérvia de Kosovo. Conforme se vai descendo de volta a colina escarpada, tornam-se mais nítidas as canções nacionalistas entoadas pelos sérvios na avenida principal da cidade. O protesto diário é iniciado às 12h44, para lembrar a resolução 1244 da ONU, de 1999, que assegura a “integridade territorial da Iugoslávia” (na época, Sérvia e Montenegro).

Sentado sobre o capô de um carro, o advogado Nikola Petrovic, de 44 anos, ativista sérvio dos direitos humanos, explica de forma simples por que não aceita a independência de Kosovo: “Os albaneses não querem mais ser minoria na Sérvia. Pois nós não queremos ser minoria em nosso país. O plano da ONU (apresentado em fevereiro de 2007) nos oferece direitos de minoria. Não sei o quão generoso ele será. Mas sei que é menos do que o que temos agora.”

“Não quero que meus filhos aprendam na escola que Kosovo foi ocupado pela Sérvia”, diz Petrovic, citando um receio muito nítido também entre os albaneses. Depois da drástica redução da autonomia de Kosovo pelo ex-presidente sérvio Slobodan Milosevic, em 1989, os albaneses criaram escolas próprias para assegurar o ensino da história ao seu modo – e não que Kosovo é o “coração da Sérvia”, por exemplo.

Na verdade, se sérvios e albaneses conversassem, perceberiam que dizem as mesmas coisas uns dos outros, com sinal trocado. Mas desde o conflito dos anos 90 os albaneses do lado sul de Mitrovica e os sérvios do norte não cruzam a ponte de 50 metros do Rio Ibar, que divide a cidade.

“Nunca conhecemos um sérvio”, dizem os albaneses Enas Ahmaetaj e Libor Halile, ambos de 16 anos, voltando da escola pela Avenida Rainha Teuta, que termina na ponte isolada por um cordão de policiais da ONU. Desde 1999, os carros dos albaneses têm placas com iniciais KS, emitidas pela administração da ONU. Os sérvios continuam usando as iniciais KM, da prefeitura de Mitrovica, integrada ao Estado sérvio. Se um carro é visto do “lado errado”, corre o risco de ser apedrejado, ou pior.

Com a injeção de US$ 11 bilhões em ajuda internacional desde 1999, os albaneses adotaram o euro; os sérvios continuam usando o dinar sérvio (1 euro = 82,5 dinares sérvios). Nem a cerveja é igual. Os albaneses, muçulmanos liberais, tomam a Peja, feita na cidade de Pec, oeste de Kosovo. Os sérvios bebem Jelen Pivo, fabricada em Apatin, na Sérvia.

“Entendo que os albaneses não se sentem confortáveis na Sérvia, mas não dou a mínima”, diz o economista Colic Zdravko, um produtor cultural de 22 anos, enquanto toma uma Jelen Pivo com os amigos numa mesa do moderno bar Incógnito, na calçada da Avenida Sumadija. “Isto aqui é parte da Sérvia há mil anos. Essa independência é uma lorota. Seria o mesmo que tirar um pedaço do Brasil e dar para outros. Ficaremos aqui para sempre.” O guitarrista Jovanovic Miljah, de 32 anos, que baixou da internet os filmes brasileiros Carandiru e Tropa de Elite (“é violento, mas real”), chegou a tocar com albaneses antes da guerra. Depois de 1999, nunca mais os viu. “Claro que há gente boa do lado albanês”, testemunha o líder da banda Lazy. “Mas não podem dizer que isto é a terra deles.”

“Os albaneses já têm o país deles, chama-se Albânia e a capital é Tirana”, define Slavko Boshkovic, de 47 anos, engenheiro mecânico, desempregado pela semiparalisação da mineradora Trepca, que operava dos dois lados e teve os negócios prejudicados pelo conflito étnico. “Vai haver guerra”, resume Bekim Bajiun, 38 anos, dono de um café. “Você aceitaria se eu arrancasse a sua mão?”, compara Zoran, de 38 anos, que não quer dar o sobrenome porque está trabalhando para a ONU.

Eles são conhecidos como membros da milícia sérvia local, que começou no fim dos anos 90 com um grupo que vigiava a ponte, para impedir albaneses de cruzar para o norte. “Aqui, todos somos voluntários”, define o advogado Petrovic, rejeitando o termo “milícia”. “Todos estamos dispostos a defender nossa terra. Nossa vantagem, aqui, é que somos muitos.”

Os 110 mil habitantes de Mitrovica dividem-se mais ou menos ao meio entre sérvios e albaneses. Ao norte do Rio Ibar, espalhados por três municípios, vivem cerca de 70 mil dos 120 mil sérvios de Kosovo (cuja população total soma 2 milhões). Os milicianos sérvios dispõem de armas pequenas, como pistolas.

Também na disposição de lutar os dois lados se encontram. “Nunca fomos a favor da violência, mas se o pior acontecer estamos prontos para nos sacrificar por nossa terra”, garante o albanês Azem Janusij, gerente de fornecimento da companhia elétrica KEK.

Como na estrada de Micronassiliev, albaneses e sérvios seguem em direções opostas, e não há espaço para os dois. Mas, nesse caso, ninguém está disposto a ceder.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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