A França de Emmanuel Macron

DE PARIS, França – Eglantine Malbec tem na ponta do lápis os motivos para votar em Emmanuel Macron, eleito o próximo presidente da França. “Tenho uma empresa pequena e vi que ele tem um programa para aliviar nossa situação”, diz Eglantine, de 46 anos, dona de uma loja de bijuterias. Durante o mandato do ex-presidente Nicolas Sarkozy (2007-2012), de direita, o governo eliminou impostos sobre horas extras, facilitando a vida dos empresários. Sob o atual presidente, François Hollande, socialista, esses impostos voltaram. A empresária, que detestava Sarkozy e costumava optar  pela esquerda, votou em Hollande em 2012 e se arrependeu: com o fim da isenção, os impostos sobre a folha de pagamentos de sua empregada na loja subiram de € 250 para € 380 por mês (de aproximadamente R$ 875 para R$ 1.330 por mês).

“Foi enorme a diferença para mim”, diz Eglantine, em seu apartamento no 5o andar de um edifício antigo sem elevador, em uma área de classe média do bairro de Marais, em Paris. “Como não tenho filhos, pago muito imposto. Tenho de me virar fazendo vários bicos.” Ela aposta também na promessa de Macron de eliminar o Regime Social dos Independentes (RSI). É uma espécie de Simples Nacional, o regime tributário diferenciado criado no Brasil para micro e pequenas empresas. O RSI, porém, é aplicado apenas à Previdência e à seguridade social, e não é nem um pouco simples. “O RSI tem sido uma hecatombe para muitos artesãos e comerciantes pequenos”, afirma Eglantine. “É muito complicado, um programa que não se adaptou a essa categoria.” Mesmo pagando mais impostos, ela preferiu continuar no regime geral. O detalhado programa de Macron, ministro da Economia entre 2014 e 2016, inclui também reduzir em 80% o imposto sobre a moradia, equivalente ao IPTU brasileiro. “Muitas pessoas pagam impostos de moradia exorbitantes, e ele vai eliminar isso também”, diz Eglantine.

O voto racional da pequena empresária explica parte do apelo eleitoral de Macron – que, até se lançar na criação do movimento político En Marche! (Em Marcha!) no ano passado, era praticamente um neófito em política, sem experiência prévia em disputas eleitorais e com uma carreira pública feita sobretudo em cargos tecnocráticos. Macron é um candidato reformista cuja plataforma lembra a “Terceira Via” britânica, o movimento de centro-esquerda que tenta preservar benefícios sociais aumentando a eficiência da economia. Ele parece a solução num país que precisa de mudanças para superar a estagnação econômica e índices de desemprego cronicamente estacionados na casa dos 10% (entre os jovens com menos de 25 anos, esse número cresce para 25%). Para devolver dinamismo à economia francesa, Macron defende reformas liberais que incluem a diminuição dos impostos para as empresas, a redução da máquina do Estado (corte de 120 mil no número de funcionários públicos) e a flexibilização de uma legislação trabalhista notoriamente rígida e que dificulta as demissões.

Ao mesmo tempo, o reformismo de Macron foi uma pedra no sapato do candidato durante toda a campanha presidencial. Num país em que o imobilismo das últimas décadas gerou uma sociedade bloqueada, conservadora e refratária a mudanças, o liberalismo econômico defendido por Macron assusta muita gente – principalmente entre os eleitores mais à esquerda, que representam cerca de um terço do eleitorado francês. Esses eleitores votaram em candidatos como o radical Jean-­Luc Mélenchon, apoiado pelos comunistas, que teve 19% dos votos, e o socialista Benoît Hamon, que teve 6%. Eles rechaçam as reformas, sobretudo a trabalhista, que Macron tentou implementar como ministro de Hol­lande, o impopular presidente cujo mandato está se encerrando.

“Esse rapaz me dá medo”, diz Isabelle Vesseron, comediante e dançarina de 30 anos, a respeito de Macron, economista de 39 anos, que fez fortuna no mercado financeiro antes de entrar no governo socialista. Sentada em um banco na icônica Praça da República, em Paris, no final de uma tarde ensolarada em que fazia 14 graus, Isabelle se define como de “esquerda” e diz ter votado em Mélenchon no primeiro turno por causa da proposta de instaurar uma “nova República” (um hábito dos estadistas franceses), no caso, a sexta. Isso significaria transferir poderes do presidente para o primeiro-ministro e o Parlamento, facilitando a representação de partidos menores (exatamente o inverso do que precisa ser feito no Brasil) e descentralizando as decisões para as regiões. “Há dez anos que todos concordam que isso é necessário”, diz Isabelle. “A economia não é prioritária para mim. As questões estão ligadas, mas não se deve colocar isso em primeiro lugar. Se melhorar a forma como as pessoas trocam ideias, conhecimentos, isso vai impulsionar a economia.”

De olho nas eleições legislativas de junho, quando pretende eleger uma boa bancada para se lançar novamente a primeiro-ministro, Mélenchon, no segundo turno da eleição francesa, preferiu capitalizar sua boa votação em lugar de facilitar as coisas para Macron. Ele recomendou não votar em Marine Le Pen, a candidata da extrema-direita, mas tampouco instruiu seus eleitores a optar por Macron, qualificado por ele como um “neoliberal”. Por isso, muitos dos eleitores de Mélenchon, como Isabelle, na reta final da campanha, balançaram entre se abster, o que poderia favorecer Le Pen, e votar em Macron, como um voto útil para barrar a radical candidata da Frente Nacional. Le Pen é uma espécie de Donald Trump de saias que propõe a retirada da França da União Europeia, o protecionismo comercial e o fechamento das fronteiras para os imigrantes.

Os eleitores de Mélenchon que se juntaram a Macron no segundo turno foram os seduzidos pela  rejeição do candidato às formas tradicionais de fazer política na França. É o caso do professor do ensino primário Jean-­Marc Gillet, de 34 anos, ex-jornalista que deixou a profissão por causa da crise no setor. Jean-Marc elogia Macron por ter sido capaz de ocupar o centro do espectro político e romper com a tradicional divisão da política francesa entre direita e esquerda. “Em geral, os políticos na França seguem uma linha claramente marcada”, diz Jean-Marc. “Macron conseguiu assumir posições verdadeiramente de centro. Consegue falar aos eleitores da esquerda propondo a refundação da República e também aos da direita com suas propostas econômicas. Acho que isso é inédito.” Como reza a plataforma da centro-esquerda de “Terceira Via”, Macron combina sua plataforma pró-mercado com a defesa de medidas de caráter social, como a ampliação do programa de seguro-­desemprego, e de propostas progressistas no campo do comportamento, como o casamento gay.

Confirmado seu favoritismo, Macron governará um país dividido não apenas em relação às reformas, mas também sobre a identidade da França e a forma como o país deve se inserir na globalização econômica. Enquanto Le Pen defende o fechamento das fronteiras, Macron quer aprofundar a integração econômica da França com a União Europeia e com o resto do mundo. É uma divisão que reflete também fraturas sociais. Em um livro de 2014 que virou um hit na campanha francesa, o geógrafo Christophe Guilluy dividiu o país em uma “França metropolitana” e uma “França periférica”. Na França metropolitana, formada por 13 grandes centros urbanos, conectados aos circuitos da globalização, há dinamismo econômico, centros de inovação tecnológica, mais empregos e renda mais alta. Na França periférica, formada por velhos centros fabris atingidos por movimentos de desindustrialização e pequenas  localidades rurais, há menos empregos e renda. A França metropolitana, segundo Guilluy, é a França de Macron. Na França periférica, a dos perdedores da globalização, reside a força política de Le Pen.

A vida real não segue rigidamente esse esquema. Aposentado da indústria siderúrgica, o ex-operário Jean-Louis (ele não quis revelar o sobrenome), de 65 anos, pertence ao público-alvo de Le Pen, que visa aos antigos trabalhadores de fábricas e minas, muitas delas fechadas por força da concorrência internacional. Mas ele vota em Macron, apesar de não gostar de sua linha liberal. Jean-Louis optou pelo candidato do En Marche! por causa da União Europeia (UE). “Sofremos a invasão da Alemanha. Não queremos isso de novo. A UE nos trouxe a estabilidade, a tranquilidade”, diz Jean-Louis. “Não é o paraíso, mas conheço muitas pessoas em outros países que gostariam de viver aqui. As pessoas que conhecem a cobertura social francesa sabem quanto é boa.” Segundo Jean-Louis, Le Pen não sabe aonde quer levar a França. “Ela quer sair da UE, mas isso não é possível, porque a integração está avançada demais. Além disso, não queremos o racismo que ela defende. É verdade que há problemas com a imigração. Mas não podemos pará-los na fronteira simplesmente”, diz o aposentado, que votou em Hollande há cinco anos.

Há uma parábola que fala de dois coelhos que corriam de um leão, quando um deles parou para calçar tênis. “Você acha que com isso vai correr mais que o leão?”, ironizou o primeiro coelho. “Não preciso correr mais que o leão, mas mais que você”, respondeu o segundo. Para vencer a eleição, Macron não precisa ser amado por todos os franceses. Só precisa ser menos temido que Le Pen. Para governar, o desafio será bem maior.

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