Na França, campo aberto para Le Pen?

BONECOS DE MACRON, FILLON E LE PEN: incerteza total nas eleições francesas / Eric Gaillard/ File Photo/ Reuters

Assombrada pelo espectro de Marine Le Pen, um Donald Trump de saias cuja eleição em maio representaria um golpe mortal na União Europeia, a corrida presidencial francesa deu uma nova guinada com uma série de escândalos de pagamentos indevidos para familiares do conservador François Fillon, até então o candidato considerado com mais chances de derrotar a líder da Frente Nacional. Essa tarefa vai sendo assumida agora pelo centrista Emmanuel Macron, que ganhou mais espaço depois que os socialistas escolheram na semana passada como candidato Benoît Hamon, cujas posições mais à esquerda tornam ainda mais remotas as chances do partido hoje no poder.

A polícia efetuou buscas no Senado nesta sexta-feira, na investigação de uma das acusações, segundo a qual Fillon teria usado verbas de seu gabinete quando senador, entre 2005 e 2007, para remunerar seus dois filhos, Charles e Marie, por supostos serviços de advocacia, quando na verdade eles ainda não tinham licença profissional para executá-los. Os dois receberam mais de 80 mil euros. Apoiado por um movimento católico que luta contra o direito de casamento entre pessoas do mesmo sexo, Fillon se enredou em tramóias que têm pouca relação com sua imagem de moralista nos costumes e liberal na economia.

O semanário satírico Le Canard Enchaîné publicou holerites segundo os quais a mulher de Fillon, Penelope, recebeu 831.400 euros como assistente parlamentar de seu marido. A reportagem afirmou que Penelope não executou os serviços. O casal desmentiu a informação, alegando que os trabalhos foram prestados. Entretanto, o canal de TV France 2 exibiu na noite desta quinta-feira 2 uma entrevista de 2007 na qual Penelope, nascida no País de Gales, declara ao jornal britânico Sunday Telegraph que nunca trabalhou como assessora do marido.

Em um terceiro caso, o site investigativo Mediapart acusou Fillon de ter desviado doações de campanha do partido Os Republicanos para a corrente por ele liderada, Força Republicana. O Ministério Público abriu uma investigação, na qual Fillon é suspeito de “desvio de fundos públicos, abuso de bens sociais e reincidência desses delitos”.

Dirigentes de Os Republicanos que apoiaram a candidatura de Nicolas Sarkozy, derrotado nas primárias de novembro, pressionam Fillon para que abra mão da candidatura em favor do ex-presidente. Fillon se recusa, e afirma que está sendo vítima de um complô. “É nossa vitória que querem roubar de nós”, escreveu ele em sua página no Facebook nesta sexta-feira, dirigindo-se a seus eleitores. O presidente do Senado, Gerard Larcher, um dos mais próximos partidários de Fillon, desmentiu em seu perfil no Twitter uma informação publicada no site da revista  L’Obs de que ele estava prestes a retirar o apoio.

De acordo com pesquisa do instituto Odoxa, 61 por cento dos entrevistados opinaram que Fillon estava errado em insistir na disputa. O candidato, que antes era o primeiro colocado nas pesquisas e chegou a ter 28% das intenções de votos antes do escândalo, vem caindo vertiginosamente. Sondagem do Ifop-Fiducial, realizada nessa quinta-feira, coloca Marine Le Pen em primeiro lugar, com 24,5%. Fillon e Macron aparecem agora empatados, com 20%. O instituto faz um tracking diário, e na véspera Fillon estava com 21%. Hamon aparece com 17%.

“O escândalo certamente tem um grande impacto”, avaliou o cientista político Bruno Cautrès, da Sciences Po, de Paris, em entrevista a Exame Hoje. “Fillon era claramente o favorito desta eleição e com certeza iria para o segundo turno (no dia 7 de maio). Mas agora não sabemos se ele conseguirá continuar na disputa. A eleição ficou muito mais incerta e aberta do que antes. Qualquer cenário é possível.”

Cautrès, que está dando um curso na USP, lembra que “antes do escândalo, Le Pen não tinha a menor chance de se eleger, porque a direita tinha um candidato sério”. Mas agora, que “esse candidato se tornou muito mais fraco, a vitória de Le Pen está entre as possibilidades”. Mas não é o cenário mais provável: “Para mim é difícil imaginar isso porque há candidatos alternativos como Macron, que podem atrair eleitores moderados de centro-direita, desapontados com o caso de Fillon.”

Macron foi ministro da Economia do atual presidente François Hollande, de quem era bastante próximo, entre 2014 e 2016. Sua gestão foi marcada por reformas para tornar as enrijecidas leis francesas mais palatáveis para a iniciativa privada. Antes de entrar no governo, Macron trabalhara em banco de investimento. Depois de relutar, passou em 2015 a se definir como “liberal” dentro do Partido Socialista.

Em agosto, em meio à extrema impopularidade do governo Hollande, Macron deixou o ministério, pouco depois de fundar o movimento Em Marcha!. Ele se lançou à presidência em novembro, na onda dos movimentos europeus que se aproveitam do desgaste dos partidos convencionais, como o Podemos da Espanha e o Cinco Estrelas da Itália.

A taxa de aprovação de Hollande alcançou em outubro o nível mais baixo da história da França, com 4%. “A esquerda tem sido impopular sob o mandato de François Hollande como a maioria dos governos na União Europeia durante esta recessão econômica”, explica Cautrès. “O governo teve de impor medidas de austeridade para tentar tornar a economia competitiva e criar empregos. Isso foi totalmente contraditório com a mensagem de Hollande na campanha de 2012, ‘le changement c’est maintenant’ (a mudança é agora).”

O cientista político diz que as grandes questões dessa eleição presidencial, cujo primeiro turno será no dia 23 de abril, são a economia e o desemprego. “Mas há também a questão de renovar nosso sistema institucional. Candidatos mais jovens, como Emmanuel Macron (39 anos) ou Benoît Hamon (49), vão enviar um sinal de que a geração mais velha precisa se retirar.”

Certo, mas a máquina de propaganda que elegeu Trump ainda não entrou em campo para ajudar Le Pen, cujas propostas de retirar a França da União Europeia e expulsar imigrantes têm o apoio declarado do presidente americano. O site Breitbart, de seu estrategista de campanha, Steve Bannon, ia estrear agora em sua versão para a França, para dar uma força na campanha da Frente Nacional, difundindo ideias nacionalistas, xenófobas e anti-islâmicas, entre outras pautas ultraconservadoras, como faz com enorme sucesso nos EUA.

Mas teve de adiar a entrada no ar por causa de um estudante francês de 22 anos. Ao ficar sabendo desse plano, noticiado pela agência Reuters em novembro, o jovem registrou os domínios breitbart.fr, breitbartnews.fr e breitbartnewsnetwork.fr, com base nos nomes usados pelo site nos EUA. “Quando vi que eles queriam se lançar na França, fiquei com muito medo, porque pensei que eles podem realmente funcionar muito bem aqui”, disse o jovem, que pediu para ser identificado apenas como Antonin, ao site americano The Verge. Ele tem planos de doar os domínios para associações que lutam contra o racismo.

Mais dia menos dia, o Breitbart contornará esse pequeno imprevisto. E aí, as eleições francesas ficarão ainda mais imprevisíveis.

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