Tskhinvali: população e esperanças arrasadas

Em dois dias na cidade, contei cerca de cem civis nas ruas

TSKHINVALI, Ossétia do Sul – Chegamos a Tskhinvali às 13h. Recebi uma mensagem da minha operadora de celular: “Bem-vindo à Rússia.” Assim como na estrada, há muito mais militares que civis nas ruas. O estádio, o ginásio, escolas – todas as instalações e terrenos grandes da cidade foram convertidos em bases militares russas. Nenhuma casa ou prédio ficou intacto. O hospital, o Parlamento, a sede do governo e do “Ministério das Relações Exteriores” (nenhum país reconhece a independência da Ossétia do Sul) foram destruídos. Sucatas de tanques georgianos espalham-se pelas ruas.

Tskhinvali tinha 40 mil habitantes antes da ofensiva georgiana; toda a Ossétia do Sul, 70 mil. Agora, estima-se que tenham restado entre 3 mil e 4 mil pessoas. Até sexta-feira, 54.530 refugiados tinham conseguido registrar-se no governo georgiano. Milhares de ossétios fugiram para a Ossétia do Norte, que pertence à Rússia. Em dois dias na cidade, contei cerca de cem civis nas ruas – quase todos idosos, alguns de meia idade e duas mulheres jovens. Não há crianças. Todos os homens em idade militar são considerados milicianos, e a maioria carrega fuzis, mesmo que não use farda.

O hospital de Tskhinvali– ele próprio destruído – registrou 300 mortes. Segundo o Exército russo, morreram 2.100 civis e 74 militares russos, e outros 171 ficaram feridos. A Geórgia considera exagerado esse número de civis mortos.

Os moradores com quem conversei disseram que a Rússia os “salvou”. A imensa maioria deseja que a Ossétia do Sul se una à do Norte, tornando-se uma república da Federação Russa. Ao mesmo tempo, dizem que não têm nada contra os georgianos étnicos, mas sim contra o presidente da Geórgia, Mikhail Saakashvili, que chamam de “genocida”.

O Ministério de Situações Emergenciais da Rússia ergueu dois acampamentos de ajuda humanitária, um com um hospital de campanha e outro com distribuição de comida e de água e registro de refugiados. Lá bebi água e almocei um prato de ração de trigo integral com carne desfiada. Havia também sopa de legumes e pão.

Quando a tarde caiu, comecei a me preocupar em voltar. Na Ossétia do Sul vigora um toque de recolher a partir de 19h. Durante todo o dia, Giorgi me telefonou, e a cada telefonema avisava que os confrontos tinham recrudescido ao redor de Gori, e que ele tinha tido de se mover para mais longe do ponto de encontro. Ao fim, encontrou abrigo num vilarejo ossétio em território controlado pela Geórgia.

Ofereci US$ 200 para todos os motoristas que encontrei na rua, milicianos e civis: “Auto (carro) granitze (fronteira) Gori”. Todos recusaram. Entendi que não fazia sentido aumentar a oferta.

Uma mulher de meia idade que entendia um pouco de inglês parou um jipe com cinco jovens milicianos ossétios e explicou minha situação. Eles usavam fardas completas, o que lhes conferia certa institucionalidade. Subi no banco do passageiro da frente, espremido contra um miliciano. Andamos vários quarteirões até chegarmos a um casarão com um pátio na frente, onde milicianos coziam carneiro numa grande panela sobre um fogo a lenha. Alguns minutos depois, chegou Andrei, um soldado ossétio de 22 anos, que estuda inglês na Universidade de Tskhinvali.

Fomos para um cômodo com dois beliches, um de frente para o outro, no quartel da milícia, ao lado do casarão. Examinou meus documentos. Perguntou sobre a situação na Geórgia e o que os georgianos pensavam sobre o conflito. Ficou com os olhos marejados, ao descrever a ofensiva georgiana: “Foi horrível.” Andrei me mostrou o jardim de infância ao lado do quartel, destruído pela artilharia. Saímos caminhando pela cidade, enquanto ele me explicava o que era cada prédio destruído. “Espero que um dia esse conflito se resolva, mas vai levar muito tempo.”

Andrei me levou ao primeiro posto de controle do Exército russo, na saída de Tskhinvali. Explicou meu caso. Os soldados russos disseram que não havia transporte para o checkpoint. Nisso apareceu um Mercedes com cinco milicianos ossétios dentro. Era o primeiro carro com o pára-brisas intacto que eu via. Ficaram contentes em poder me levar, desde que eu mostrasse minha credencial de jornalista em cada checkpoint russo e explicasse que eles estavam me “escoltando”. Deduzi que queriam viajar e precisavam de apresentar uma justificativa aos russos.

Estavam animadíssimos. Pediram que os fotografasse e tirássemos fotos juntos. Elogiei o MP3 player do carro, e puseram a música pop americana a todo volume. Um deles falava um pouco de inglês. Chamava-se Alan (o nome da tribo da qual descendem os ossétios) e tinha 21 anos. Todos disseram que odiavam os georgianos, o que era de esperar. Perguntei se os russos eram bons, e Alan fez uma revelação interessante: “Rossiye”, disse ele, com a expressão de desgosto, e bateu uma mão contra a outra, como num golpe de caratê.

Depois de passarmos sem problemas por um checkpoint russo e um ossétio, chegamos aonde meus amigos queriam ir: um posto na beira da estrada, no qual os milicianos tiravam gasolina diretamente do reservatório. Estávamos a 4 km da linha de demarcação que eu cruzara pela manhã. Duzentos metros adiante havia um posto de controle russo. Os ossétios expuseram, confiantes, o meu caso. Havia duas poltronas no vão de passagem, no meio da estrada. Quando permitiam a passagem, o major encarregado e um tenente afastavam as poltronas. Depois de ouvir meu caso, os dois se sentaram nas poltronas. O major cruzou os braços e balançou a cabeça com os olhos fechados, enquanto eu argumentava.

Outro major estava sentado sobre um tanque ao lado. Fui insistir com ele, dizendo que eu poderia caminhar, apontando para a estrada à nossa frente, coberta por uma espessa fumaça branca. Ele falava um pouco de inglês. “Não existe mais o checkpoint pelo qual você passou. Destruímos todos os carros que havia na área e o seu motorista agora deve estar morto”, disse ele com um sorriso. Respondi que estivéramos em contato e eu sabia que ele tinha escapado. O major repetia: “Niet.”

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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