‘Um miliciano mirou o fuzil no meu peito e pulei na estrada’

Repórter do ‘Estado’ descreve os perigos enfrentados no trajeto da cidade georgiana de Gori até Tskhinvali, Ossétia do Sul

TSKHINVALI, Ossétia do Sul – Eram 10h47 de quarta-feira quando chegamos à bifurcação depois de Gori, 80 km a oeste de Tbilisi (capital da Geórgia). À esquerda, a estrada segue para o Porto de Batumi, no Mar Negro; à direita, para Tskhinvali, capital da província separatista da Ossétia do Sul. Entramos devagar pela estrada coberta de brita fina. A 100 metros, vimos os primeiros tanques russos. Um soldado se abaixou e mirou o fuzil no nosso jipe, em posição de tiro. Voltamos de ré para a estrada principal.

À frente, na direção de Batumi, os poucos carros na estrada davam meia-volta e aceleravam em direção a Gori. Disparos de fuzis e artilharia vinham daquele lado. Eu saberia depois que o Exército russo estava completando ali o seu movimento de pinça para bloquear o acesso georgiano às províncias separatistas da Ossétia do Sul e da Abkházia (a noroeste). O motorista e o dono da agência de carros – que nos acompanhava porque os seguros não estão cobrindo viagens para fora de Tbilisi e ele queria certificar-se de que seu jipe voltaria – ficaram de me esperar nos arredores de Gori, que, conforme eu presenciara na véspera, tinha sido bombardeada pela aviação russa e abandonada pelo Exército georgiano.

Voltei caminhando pela estrada, com minha credencial na mão e gritando: “Press, Korrespondant.” Quando cheguei ao posto de controle, que representava a linha divisória entre as áreas controladas pela Geórgia e pela Rússia, contei 13 tanques e cerca de 30 militares russos. O comandante era um major. Mostrei minha credencial e meu passaporte brasileiro. Expliquei que queria ir para Tskhinvali. Chamou um soldado checheno, que pilotava um dos tanques e falava um pouco de inglês.

O soldado examinou minha câmera, que não tinha nenhuma imagem. Levou-me para perto de uma pequena construção de alvenaria, parecida com um posto da polícia rodoviária no Brasil, e me disse que eles parariam um carro para me levar para Tskhinvali. Tirou de um bolso da farda um pacote de gaze e amarrou no meu ombro.

A faixa branca é o símbolo dos militares russos e dos milicianos ossétios, que se consideram “forças de paz” na Ossétia do Sul. Um acordo firmado em novembro de 1992, depois da declaração de independência da Ossétia do Sul, seguida de um conflito armado, criou forças de paz russas, ossétias e georgianas, para garantir a ordem na província. Os georgianos acusam os russos de apoiar os separatistas ossétios, e as escaramuças entre os dois lados foram freqüentes, até desencadear, no dia 8, a ofensiva militar da Geórgia, para retomar a província.

Peguei o celular para avisar Giorgi, o dono da locadora de carros, que tinha conseguido passar. O soldado quis ver as imagens do celular. Mostrei uma foto dos meus filhos. Ele me disse que também tinha dois filhos, era do Daguestão (república russa), e me pediu para telefonar para casa. Marquei os números, mas a ligação não completou. Faltava o código da Rússia (7), que ele não sabia.

Talvez contrariado com o telefonema, o major deu ordem para o soldado manobrar o seu tanque. Então o próprio major se aproximou e me ofereceu uma garrafa de Fanta, com um quarto de conteúdo. “Spassiba”, recusei. Tinha acabado de tomar quase uma garrafa de água no carro, antes de vir. O major insistiu. Um soldado ao lado fez sinal para eu aceitar. Compreendi que era uma ordem, e virei todo o refrigerante, morno e sem gás. Só mais tarde entenderia o valor do líquido. Não há água potável, comida nem eletricidade em Tskhinvali. Só os militares russos têm geradores e suprimentos.

Os disparos se aproximaram do checkpoint. Mandaram que eu ficasse atrás de um tanque, enquanto assumiam posições de tiro. Nisso, cinco milicianos ossétios cruzaram o posto a toda velocidade, num velho Lada Samara. Em seguida, parou um sedã seminovo da Opel, com um jovem casal dentro. O checheno me mandou entrar correndo no carro, e saírmos depressa. Os disparos se intensificavam.

Rodamos menos de um quilômetro. Depois de uma curva, os ossétios nos esperavam. Apontando os fuzis para nós, mandaram descermos do carro. Um dos milicianos assumiu o volante do Opel. Mandaram que eu me sentasse no banco de trás do Lada. O motor do velho carro tinha apagado, e eles começaram a empurrá-lo, até pegar no tranco. Um miliciano de camiseta preta e calça de camuflagem ajoelhou-se no banco do passageiro da frente e mirou o fuzil no meu peito, gritando. Abri a porta à minha direita com tanta força que a maçaneta saiu na minha mão. Pulei na estrada. Eles arrancaram com a porta aberta. O Opel ia à frente.

O casal chorava, abraçado na beira da estrada. Ele era georgiano, e ela se identificou como russa. Deduzi que era da Ossétia do Norte, que pertence à Rússia, para onde eles estavam tentando ir. O casal ficou sem nada. Dinheiro, documentos, lap top e bagagem foram com o carro.

Caminhamos de volta para o checkpoint russo. Quando nos avistaram, os russos vieram no tanque pilotado pelo checheno, com o major sentado à frente. O rapaz georgiano ergueu as mãos para o alto, como quem se rende. Contrariado, o major mandou-o abaixar os braços.

O rapaz contou a história, gaguejando, em russo, numa mescla de nervosismo e dificuldade com a língua, falada por todos os georgianos até que o país se proclamou independente em abril de 1991 – quatro meses depois do fim da União Soviética. A nova geração não fala russo.

Dois carros velhos vindo de Tskhinvali pararam. Desceram dois homens e três mulheres idosos, e uma de meia idade, chorando. Antes que os russos tivessem tempo de cuidar de todos os casos, que se acumulavam, seis carros com 30 milicianos ossétios se aproximaram. Seis russos desceram do tanque e cercaram os carros apontando os fuzis para eles. Mandaram descer, largar as armas e deitar no chão. Aliados dos russos, os ossétios, perplexos, relutaram em obedecer. Não sabiam que o major estava tentando restaurar sua autoridade depois que os outros ossétios o desafiaram confiscando o carro do casal.

Os milicianos estavam em folgada superioridade numérica, mas os russos tinham um tanque e, muito mais importante que isso, dão a palavra final na Ossétia do Sul. Nos dois dias que passei na província, só vi um blindado com milicianos ossétios. Eles desfilavam em Tskhinvali, com a bandeira de faixas branca, amarela e vermelha da “República da Ossétia do Sul”, visivelmente orgulhosos de seu veículo. Mas a norma é circularem em caminhonetes, jipes e carros de passeio, obviamente confiscados como o Opel do rapaz georgiano. Em contrapartida, os russos têm dezenas de tanques, carros blindados e caminhões na província.

Humilhados, os ossétios se levantaram do chão e vieram descontar no casal, formando um semicírculo ao nosso redor. Alguns queriam agredir o rapaz; outros, levar a moça. Os russos os impediram. Os milicianos entraram nos seus carros e partiram em direção ao checkpoint.

Em seguida, um jipe do Exército russo chegou trazendo três jornalistas russos, que tinham pedido para ver a situação na estrada até a linha de demarcação, por eles chamada de “fronteira de Gori”.

Eles desceram e o jipe seguiu. Esperamos uma carona. Parou um sedã BMW preto, com os vidros estilhaçados e dois soldados russos. O do banco do passageiro usava goggles militares, que lembram óculos de mergulhador. Nós quatro sentamos no banco de trás. O BMW parecia ter acabado de ser confiscado do outro lado da linha divisória, porque os militares pararam depois de novo para arrancar, com o cabo do fuzil, o pára-brisa espatifado, que atrapalhava sua visão.

Logo adiante, pararam novamente, num restaurante, do qual saíram milicianos ossétios, que lhes entregaram caixas de cerveja georgiana. Os soldados as destamparam com os dentes, e foram bebendo no caminho. Deram um maço de cigarro russo da marca Alliance para cada um de nós. Estavam eufóricos. A cada militar russo e miliciano ossétio que cruzavam, buzinavam e mostravam o punho fechado – saudação-padrão. Conforme avançávamos nos 25 km até Tskhinvali, e o motorista virava as cervejas, nosso trajeto pela estrada de asfalto – riscado pelas lagartas dos tanques – se tornava mais errático.

Dois corpos de homens ainda estavam na beira do caminho – um debaixo de uma van tombada de lado e outro deitado com a barriga para cima, em frente a um posto de gasolina. Brinquedos, bicicletas de crianças e cobertas na beira da estrada, assim como carros esmagados, davam uma idéia da avassaladora ofensiva georgiana dos dias 8 e 9, repelida em seguida pelos russos.

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