As mil e uma consequências do Brexit

Ao votar no plebiscito desta quinta-feira, os britânicos decidirão muito mais do que a continuação ou não do Reino Unido na União Europeia (UE). Quarta maior economia do mundo, responsável por 12% da receita da UE, uma saída britânica, ou Brexit, o neologismo em inglês, pode desencadear uma crise econômica global e levar à dissolução do próprio bloco. O voto da maioria em favor da permanência afastará esses riscos de forma mais imediata, mas as fissuras no interior do governo conservador, assim como o crescimento do nacionalismo em vários países, manterão essa espada sobre as cabeças tanto do primeiro-ministro David Cameron quanto de outros governantes europeus. Independentemente do resultado, o desafio à União Europeia veio para ficar, alimentado pela insegurança causada pela imigração e pelo terrorismo, ao lado de uma sensação difusa de perda da identidade e de nostalgia de um passado idealizado.

No caso específico da Grã-Bretanha, esses sentimentos são ampliados pela condição de ilha, que estaria sofrendo essas influências negativas do continente, e pelo luto com relação ao passado de império. A campanha pela saída contou, ainda, com o carisma do popular prefeito de Londres, Boris Johnson. Por outro lado, a campanha em favor do sim bombardeou os britânicos com os possíveis efeitos negativos de uma saída sobre a economia do país. Faltava a esses argumentos racionais o elemento emocional que tanto fortaleceu a campanha pela saída. Nesse sentido, a causa da permanência acabou ajudada pelo assassinato da deputada trabalhista Jo Cox na quinta-feira, 17, exatamente uma semana antes do plebiscito, por um extremista nacionalista aparentemente com perturbações mentais. Não ajudou muito também a Brexit a linguagem adotada pelo grupo de extrema direita Partido da Independência do Reino Unido, cujo cartaz retratando, como ameaça, a entrada em massa de imigrantes sírios, lembrou a propaganda nazista dos anos 30 na Alemanha.

Uma saída da Grã-Bretanha da UE teria consequências difíceis de imaginar, não só pela importância do país no bloco, mas também pelo seu ineditismo: seria a primeira vez desde sua fundação (menor e com outro nome), há seis décadas, que o grupo perderia um membro.

“Se a Grã-Bretanha sair da União Europeia, vai causar uma reação em cadeia que mudará fundamentalmente como o bloco opera, se não o dissolver completamente”, avalia Adriano Bosoni, analista de temas europeus da empresa de análise de risco Stratfor. Bancos centrais do mundo todo, incluindo dos Estados Unidos, Japão e Índia, emitiram alertas para os efeitos, sobre os mercados financeiros globais, de um longo período de incerteza na Europa.

O PIB britânico cresceu 0,4% no primeiro trimestre — menos que o último trimestre do ano passado, quando havia crescido 0,6%, em um ritmo já considerado fraco. Causado em parte pela incerteza produzida pelo plebiscito desta quinta-feira, foi o pior desempenho desde o último trimestre de 2012. O crescimento anual foi revisto de 2,1% para 2%. O Tesouro prevê contração de 3% a 6% nos dois primeiros anos de uma eventual saída britânica da UE.  “As coisas tendem a piorar em caso de uma vitória da saída, com a retirada de dinheiro do país e o enfraquecimento da libra”, prevê uma análise de cenário feita por uma equipe liderada por Bosoni. “O apelo da Grã-Bretanha como porta de entrada dos investimentos para a Europa poderia diminuir, ameaçando sua posição como maior destinatário de investimentos diretos do bloco.” Muitas empresas e bancos não-europeus têm suas sedes na Grã-Bretanha, e poderão transferir-se para países membros da UE.

Além disso, uma vitória da saída quase certamente motivaria a renúncia do primeiro-ministro David Cameron, que arrancou concessões da UE para defender a permanência do país no bloco. As facções de seu Partido Conservador que apoiam a saída teriam então de demonstrar que controlam cadeiras suficientes no Parlamento para eleger o sucessor de Cameron sem desencadear novas eleições, observa o estudo da Stratfor. Não seria algo garantido, dadas as divisões no partido — metade do gabinete apoia a saída, incluindo o ministro da Justiça, Michael Gove, amigo de Cameron, enquanto o ministro da Economia, George Osborne, é um dos grandes defensores da permanência no bloco.

A saída levaria os escoceses a reverem sua decisão de não se separar do Reino Unido, tomada em 2014, com 55% dos votos em um plebiscito. Essa decisão foi baseada, em parte, no fato de o país pertencer à UE, com seu poder descentralizado. A Brexit causaria tensões também na Irlanda do Norte, cuja minoria católica se sente conectada à República da Irlanda por meio da UE.

Mesmo que seja aprovada nesta quinta-feira, a saída da Grã-Bretanha não entraria em vigor imediatamente. O Tratado da União Europeia prevê um período de até dois anos de negociação do novo status do país em relação ao bloco — e existem várias opções. A mais canhestra seria recuar para a estaca zero, deixando que as transações comerciais britânicas com os países europeus sejam regidas pela Organização Mundial do Comércio (OMC).

Uma das críticas que se fazem aos defensores da saída é que eles não apresentaram uma estratégia sobre o status posterior do país em relação à Europa e ao mundo — sim, porque o desligamento do bloco deixa a Grã-Bretanha sem regras de relacionamento com todos os outros países. Uma corrente entre os defensores da saída fala em eliminar unilateralmente as tarifas de importação. Isso parece pouco razoável para os interesses do país, que ficaria sem poder de negociação de contrapartidas para o acesso aos mercados europeu e mundial. O estudo da Stratfor explora três modelos de relações com a UE: o norueguês, o suíço e o sul-coreano.

A Noruega não é membro da UE, mas da Área Econômica Europeia (AEE). A Grã-Bretanha teria então de adotar as regulações da UE e continuar contribuindo para o orçamento do bloco — duas imposições das quais os defensores da Brexit querem se livrar — e isso, sem participar das decisões tomadas em Bruxelas. A Noruega paga em contribuições entre 80% e 90% do valor per capita pago pela Grã-Bretanha. A Noruega obedece a três quartos da legislação europeia, sem ter influência alguma sobre sua elaboração. De acordo com o cientista político Baldur Thorhallsson, da Universidade da Islândia, os países membros da AEE sofrem de “duplo déficit democrático”: pela centralização das tomadas de decisão em Bruexas, da qual já se queixam cidadãos dos países membros do bloco, e por não participar sequer dos debates em torno das propostas.

Os países que seguem esse modelo, que incluem também a Islândia e Liechtenstein, têm acesso ao Mercado Comum Europeu, mas seus produtos, para serem exportados, estão sujeitos a verificações de origem. De acordo com o instituto de pesquisas Open Europe, esse sistema, se aplicado à Grã-Bretanha, custaria quase 1% de seu PIB.

A Islândia é um exemplo simplificado das consequências dessa escolha, mostra reportagem da revista The Economist. O país ficou de fora da UE para continuar regulando e gerindo o seu setor de pescados, que responde por um terço de suas exportações, e também por causa das resistências de seus produtores agrícolas. Na AEE, a Islândia exclui os dois setores mas pode vender para o Mercado Comum. Depois da crise bancária de 2008, a Islândia, então governada pelos social-democratas, entrou com pedido de ingresso na UE, em busca de suporte à sua estabilidade financeira, o que incluía a ideia de trocar a coroa islandesa pelo euro. Mas o país retirou seu pedido com a crise do euro e a chegada ao poder da coalizão dos partidos da Independência e Progressista, ambos de centro-direita, vencedores das eleições de abril de 2013.

A ministra das Relações Exteriores islandesa, Lilja Alfredsdottir, diz que o país está contente de estar dentro da AEE e fora da zona do euro, porque pôde desvalorizar a coroa e conduzir sua política monetária, diferentemente da Grécia e da Irlanda, por exemplo. Ao reter sua soberania, avalia ela, o país está no melhor de dois mundos. Essa visão não é consenso, no entanto, até porque foi o Fundo Monetário Internacional quem ditou a política monetária frente à crise de 2008 e 2009, tanto para a Islândia quanto para a zona do euro. Uma corrente da oposição defende a convocação de um referendo sobre a retomada de negociações com a UE.

A Grã-Bretanha poderia seguir o exemplo da Suíça, que negociou um conjunto de acordos bilaterais sobre seu acesso ao Mercado Comum em alguns setores. Assim, o país tem de aderir apenas às regulações desses setores. No caso da Suíça, foram mais de cem acordos, que levaram anos de duras negociações. Uma coisa é construir um trabalhoso arranjo como esse partindo do zero. Outra é retoceder das vantagens associadas à participação do bloco e começar tudo de novo. E a Suíça ainda paga cerca de metade do valor per capita das contribuições pagas pelos britânicos para o orçamento da UE.

Defensores da Brexit têm dado preferência ao modelo sul-coreano. Depois de uma década de negociações, a Coreia do Sul firmou em 2009 um acordo de livre comércio com a UE. Se a Grã-Bretanha seguir esse caminho, provavelmente a UE limitará seu acesso a certos setores, como os serviços financeiros, prevê o estudo da Stratfor.

Uma eventual saída britânica prejudicaria também a economia da UE — segundo PIB do mundo, depois do americano. As exportações despencariam entre os principais parceiros comerciais da Grã-Bretanha, como Irlanda, Holanda e Bélgica: 14% dos produtos irlandeses exportados têm o Reino Unido como destino, assim como 9% dos holandeses e belgas. Sem um acordo de comércio em vigor, as transações entre a Grã-Bretanha e a UE ficariam sujeitas a tarifas alfandegárias de “nação mais favorecida” estipuladas pela OMC, que vão de 4,1%, no caso do gás natural liquefeito, a 32%, sobre o vinho. No setor de serviços, os membros da UE impõem diferentes barreiras não-tarifárias, por meio de regulações internas.

Mesmo no setor agrícola, em que sempre houve muita controvérsia sobre o quanto a UE seria benéfica para os britânicos, os números parecem claros: os subsídios da Política Agrícola Comum respondem por 54% do rendimento dos produtores rurais do país, e o mercado europeu é destino de 62% dos produtos agrícolas do Reino Unido. Além disso, se o argumento mais forte em favor da saída do bloco é o interesse de barrar os imigrantes, os setores mais intensivos em mão-de-obra do agronegócio se utilizam desses trabalhadores de forma sazonal.

Saindo do âmbito europeu, defensores da Brexit acenam com a liberdade que a Grã-Bretanha teria de firmar acordos com outros países, como a China e os Estados Unidos. Entretanto, a experiência dos países que estão fora da UE não tem sido tão proveitosa assim. A Suíça ofereceu o corte imediato de tarifas para os produtos chineses, enquanto que a China acenou com uma reciprocidade em um prazo de 5 a 15 anos. Excluindo-se do bloco europeu, a Grã-Bretanha ficaria de fora da Parceria Transatlântica de Comércio e Investimentos com os Estados Unidos e do acordo de livre comércio UE-Canadá.

A Grã-Bretanha teria de renegociar com os 53 países que têm acordos de livre comércio com a UE. Imagine todos os setores da economia — agronegócio, indústria, serviços — dos dois lados lutando por seus interesses, para deixar de perder o que perdiam com o sistema anterior ou para continuar ganhando.

Do ponto de vista econômico, fica bastante claro que a Brexit é, no mínimo, a abertura de uma caixa de Pandora, da qual sairão muitas surpresas, a maioria delas, desagradáveis. Os defensores da saída intuem isso, e falam dos ganhos econômicos de maneira vaga, mantendo seu foco no desejo de barrar a enxurrada de imigrantes beneficiada com o Espaço Schengen, que prevê o livre movimento de pessoas. Entretanto, metade dos imigrantes que chega à Grã-Bretanha vem de países não membros da UE, e portanto as autoridades britânicas têm total autonomia para decidir sobre sua entrada. E são esses imigrantes sírios, afegãos etc. que assombram os britânicos comuns, que os associam ao terrorismo e a uma sobrecarga econômica e social para o país. Assim como acontece nas questões econômicas, a campanha da Brexit se aproveita de sentimentos difusos para oferecer uma suposta solução que tem pouca ou nenhuma relação com a causa dos descontentamentos.

Realmente, a propaganda é a alma do negócio.

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