Da propriedade coletiva para a proibitiva

Interesses econômicos e políticos interferem na regulamentação de obras em Moscou

MOSCOU – À primeira vista, o bairro Ziablikovo, no sul de Moscou, parece mais uma de tantas áreas residenciais que circundam a cidade, com suas tediosas fileiras de edifícios cinzentos, ladeados por filas de contêineres metálicos: garagens improvisadas, um item não incluído pelos planejadores soviéticos, nos anos 1960 e 1970, quando era impensável cada família ter o seu carro. Na Rua Orekhoviy, a monotonia é quebrada por uma obra tocada em ritmo acelerado, numa área de 15.292 metros quadrados, onde poucas semanas antes as crianças dos prédios em redor brincavam num pomar de macieiras. Em seu lugar estão sendo construídas duas torres de 18 andares para o temido Serviço de Segurança Federal (FSB), que substituiu a lendária KGB depois do desmantelamento da União Soviética, em 1990.

Os moradores pedem para não se identificar e falam com ansiedade e medo. Desde o começo do movimento contra a obra, iniciada em janeiro, eles perceberam que estavam lidando com um inimigo diferente. O pomar foi varrido da área da noite para o dia. Quando cerca de 400 moradores se juntaram, espontaneamente, para protestar, na noite de 5 de fevereiro, os 40 guardas da obra lançaram um gás não-identificado na multidão. De 200 a 300 policiais surgiram, assim como homens à paisana, e oito manifestantes foram presos, incluindo quatro menores de idade, segundo os moradores. Nas semanas seguintes, ocorreram duas outras manifestações, e as cenas se repetiram. No total, foram presas 16 pessoas.

Pela lei, uma obra como essa, no meio de um conjunto residencial, tem de passar por audiências públicas. Segundo os moradores, isso não ocorreu. Eles mostram um documento assinado pelo prefeito Ygor Luzhkov em 21 de agosto de 2007 proibindo a obra. Num segundo documento, de 5 de dezembro, Luzhkov volta atrás e autoriza o empreendimento. Mas, garantem os moradores, a obra continua sem alvará.

“Aqui a FSB está acima de tudo”, diz uma moradora de 40 anos. “Essas três letras protegem esse empreendimento”, acrescenta outro morador, de 60. Antes de se tornar presidente, em 2000, o primeiro-ministro e homem forte do país, Vladimir Putin, comandou a FSB. Putin levou para o Kremlin ex-colegas de serviço secreto, incluindo o ministro do Interior, Rachid Nurgaliyev, responsável pela polícia. “Violaram as leis ambientais e nossas crianças ficaram sem seu parque para brincar”, observa a moradora. “Os apartamentos perderam 50% do valor. Os prédios mais velhos em redor da obra não vão resistir a ela.” São quatro edifícios, com cerca de 5 mil moradores. Construídos em 1976, no esquema de produção em série da União Soviética, que sofria da escassez de recursos e pressão da demanda, eles não transmitem muita solidez. Até onde os atentos moradores puderam observar, não foi feita sondagem do terreno antes de começarem as fundações.

“Conflitos como esse acontecem todos os dias”, relata o vereador Sergei Mitrokhin, líder do partido de oposição Yabloko. Segundo ele, a causa é, como na obra da FSB, a interferência de interesses econômicos e políticos.

Prefeito desde 1992, Luzhkov, de 71 anos, é marido da única mulher bilionária da Rússia, Yelena Baturina. Ela é dona da holding Inteko, que passou a se concentrar no setor de construção civil depois que Luzhkov se tornou prefeito. A empresa cresce vertiginosamente e ganha contratos de obras municipais, como as do Estádio Luzhniki. Além disso, aponta Mitrokhin, o funcionário da prefeitura responsável pela aprovação dos projetos, Vladimir Ressin, é membro de um conselho que reúne grandes construtoras.

O liberal Mitrokhin lembra, sem saudosismo, que, na época da União Soviética, o planejamento tinha um papel importante. “Agora, os funcionários decidem tudo sem consultar os planejadores. O lobby das empresas intervém e vira uma salada, aprovando-se projetos absurdos.” Ele cita como exemplo o contrato da obra de um túnel sob o Largo Bielo-Rússia, para aliviar o trânsito na região central.

A construtora que ganhou o contrato recebeu, em troca, permissão para construir um shopping, que deve aumentar o trânsito. “Em vez de resolver o problema, vai piorar”, diz o vereador. “A chave que explica tudo é a corrupção.”

Moscou construiu sete arranha-céus ao longo da era soviética (1917-1990). São as chamadas Sete Torres, que emulam as Sete Colinas de Roma. Os dirigentes comunistas, como os tsares (monarcas) antes deles, achavam que Moscou seria a próxima capital de um império mundial. Agora, sobre a mesa do não menos ambicioso Luzhkov repousam projetos de 200 arranha-céus. O urbanista americano Blair Ruble, especialista em Moscou, observa que esses projetos são tocados sem muita atenção ao planejamento: “Uns fazem algum sentido. A maioria, não. Parece não haver controle algum, e tanto os imóveis quanto os projetos ficam com quem paga mais.”

Existem leis municipais de zoneamento urbano, mas elas se chocam com outras leis estaduais e federais, observa Alexander Vysokovskiy, diretor da Fundação de Reforma e Desenvolvimento Urbano. Leis da antiga União Soviética ainda estão em vigor. Ora convivem, ora colidem com normas adequadas ao sistema capitalista. Uma das queixas mais comuns é quanto à dificuldade de regularizar a propriedade privada sobre imóveis ocupados desde a época soviética, quando eram estatais. “Talvez o maior problema de todos seja uma total ausência de consciência de que a boa governança depende de transparência e prestação de contas aos cidadãos”, afirma o urbanista Ruble.

Em menos de duas décadas, o mercado imobiliário moscovita saiu da propriedade coletiva para a proibitiva. Moscou lidera as recomendações para a compra de imóveis na Europa, na edição de 2008 do relatório anual Emerging Trends in Real Estate. “Esse mercado tem enorme profundidade e fôlego”, assinala o relatório, elaborado pelo Urban Land Institute e pela empresa de consultoria PricewaterhouseCoopers.

O metro quadrado de apartamentos de quarto, sala, cozinha e banheiro em edifícios sem graça custa US$ 5 mil (R$ 8 mil). Nos edifícios mais charmosos, antes habitados por políticos ou intelectuais amigos do antigo regime, pode chegar a US$ 30 mil (R$ 47,9 mil). O preço da moradia, combinado com a valorização do rublo em relação ao dólar, leva Moscou a encabeçar as listas de cidades mais caras do mundo.

Economistas afirmam que o preço dos imóveis na capital acompanha a cotação do petróleo, do qual a Rússia é o segundo maior produtor e exportador mundial. Mas o magnetismo exercido por Moscou também ajuda a explicar essa escalada dos preços. De acordo com pesquisa do instituto oficial VTsIOM, os russos consideram Moscou o lugar mais atraente para morar. Além disso, enquanto a renda média das famílias em toda a Rússia é de aproximadamente R$ 906 mensais, em Moscou ela alcança R$ 1.757, segundo o Levada Center, que faz pesquisas domiciliares mensais.

A especulação imobiliária em Moscou segue caminho inverso ao de muitas metrópoles. Se em São Paulo ela empurra as zonas residenciais para longe do centro, em Moscou as pessoas se apertam na área central da cidade. Ninguém mora em casa em Moscou. Todas foram confiscadas pela Revolução de 1917 e convertidas em museus, bibliotecas, repartições públicas. Só agora os “oligarcas”, como são chamados os novos-ricos, começam a mudar-se para condomínios fechados fora da cidade.

O grande adensamento é uma tendência desde que Moscou voltou a ser a capital da Rússia, em 1918, por decisão do líder Vladimir Ilitch Lênin (em 1703, o poder fora transferido para São Petersburgo pelo tsar Pedro, o Grande, na tentativa de dar um lustro europeu ao império russo). Por décadas, o governo soviético só construiu na capital, diz o diretor do Museu de Arquitetura de Moscou, David Sarkisyan: “A megalópole cresceu socando as pessoas, que se habituaram a viver sob condições muito ruins.”

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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