Trump, Putin, e um teste chamado Síria

PUTIN E A CÚPULA MILITAR RUSSA: uma nova aliança com o Irã e a Turquia muda a geopolítica do Oriente/ Sputinik/ Kremlin/ Alexei Nikolskyi

Lourival Sant’Anna

Com notável frequência na História, acontecimentos trágicos servem para catalisar processos em andamento. O emocionalismo causado pelo assassinato do embaixador russo em Ancara, na segunda-feira 19, selou a formação de um novo triângulo no Oriente Médio, composto por Rússia, Turquia e Irã. No dia seguinte ao atentado, chanceleres dos três países se reuniram em Moscou para discutir uma solução para a Síria, enquanto as forças leais ao ditador Bashar al-Assad retomavam Alepo, com apoio russo e iraniano. A reunião significou a exclusão dos EUA e da Europa do tabuleiro regional, resultante em grande medida de sua paralisia, em contraste com o intenso ativismo dos três países.

A aproximação da Turquia em relação à Rússia é mais um capítulo na pendular história turca, marcada por sua ambivalência cultural e geográfica, de país encravado na Ásia, mas com sua maior e mais importante cidade, Istambul, situada no extremo leste da Europa. De membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), liderada pelos EUA, e candidata, dez anos atrás, a ingressar na União Europeia, a Turquia volta seus olhos mais uma vez para o leste.

Outro fato inesperado, a tentativa de golpe militar de julho, também serviu de fermento para esse processo. O presidente Recep Tayyip Erdogan realizou expurgos nas Forças Armadas, que excluíram oficiais pró-Otan e deram mais poder aos “eurasianistas”, que defendem a aproximação com a Rússia. O reatamento tivera início pouco antes, com uma carta de Erdogan ao presidente Vladimir Putin, pedindo desculpas pela derrubada do avião russo em dezembro do ano passado, na fronteira entre a Turquia e a Síria.

No dia seguinte ao envio da carta, outro evento trágico criou o ambiente para a aceleração do reatamento: um atentado do Estado Islâmico em Istambul fez Putin ligar para Erdogan e trocarem promessas de cooperação na luta contra o terrorismo e em uma solução para a Síria. Ambos se encontravam então em lados opostos, com Erdogan apoiando os insurgentes e Putin, o regime de Assad. Depois do golpe, os dois se reuniram na cidade russa de São Petersburgo. Teve início então uma gradual convergência, que culminou no encontro dos chanceleres de terça-feira 20 em Moscou.

“O deslocamento da Turquia da aliança transatlântica (a Otan) e seu movimento em direção à Rússia e ao Irã vinham sendo preparados havia muito tempo”, analisa o ex-deputado turco Aykan Erdemir, hoje pesquisador da Fundação para a Defesa das Democracias, de Washington. “Para Erdogan, os Estados Unidos se tornaram irrelevantes, porque no Oriente Médio ações contam mais do que retórica. E Washington foi mais falação do que ação.”

Ao longo do ano, EUA e Rússia tentaram estabelecer um cessar-fogo na Síria, que fracassou sucessivas vezes. Os EUA apoiam rebeldes árabes seculares e guerrilheiros curdos, que lutam contra o regime de Assad. O conflito de interesses entre americanos e russos, e a desconfiança entre os rebeldes e o regime inviabilizaram um acordo duradouro.

O chanceler russo, Serguei Lavrov, celebrou na terça-feira 20 a inclusão da Turquia na parceria entre a Rússia e o Irã, que também apoia o regime sírio: “A troika Rússia-Síria-Irã mostrou hoje como é eficiente por meio da ação prática”. Seu colega turco, Mevlut Cavusoglu, concordou: “Acreditamos que o melhor formato é aquele no qual decisões são tomadas e postas em prática. Infelizmente nenhuma dessas decisões foi realmente implementada e a situação está se deteriorando”, disse ele, referindo-se aos acordos com os EUA descumpridos.

Lavrov salientou que havia um consenso entre os três de que mudança de regime não seria uma prioridade na Síria. Ele leu uma declaração conjunta  reafirmando a soberania e a integridade territorial da Síria, o combate ao terrorismo e o compromisso com um regime plural e secular. O destino de Assad não foi mencionado. Antes, a Turquia, em linha com os EUA e a União Europeia, exigia a saída do ditador.

“A declaração é bastante chocante”, comentou Erdemir. “É diametralmente oposta à posição da Turquia em relação à Síria desde 2011 (início da Primavera Árabe). É basicamente a Turquia aceitando Assad.”

O distanciamento da Turquia em relação aos EUA e à UE e sua aproximação com a Rússia têm a ver também com realidades no terreno. Americanos e europeus priorizaram apoiar grupos na Síria que não tivessem relação com o radicalismo islâmico. Como o Exército Sírio Livre, a força rebelde secular árabe, não tinha um contingente suficiente, e em vários locais se aliou a grupos radicais islâmicos, a CIA treinou milicianos árabes que somavam apenas 5 mil combatentes, um número insuficiente para fazer frente às forças leais a Assad e às células islâmicas. Diante disso, americanos e europeus recorreram à guerrilha curda Unidades de Proteção do Povo (YPG), que também é secular, e soma 20 mil homens. Juntos, árabes seculares e curdos formaram as Forças Democráticas Sírias.

Para a Turquia, no entanto, muito mais vital do que derrubar a ditadura de Assad é conter o movimento de autonomia dos curdos, presente no sudeste do país. Se vitoriosa, a guerrilha curda na Síria apoiada pelos americanos criaria um território curdo autônomo na fronteira sul da Turquia. Foi essa constatação que levou a Turquia a agir por conta própria no norte da Síria, e a aproximar-se da Rússia.

Ao conflito de interesses entre Turquia, de um lado, e EUA e UE, do outro, por causa da questão curda, somou-se ainda a falta de credibilidade do governo americano na região. Desde que o presidente Barack Obama recuou de sua ameaça de intervir na Síria se o regime usasse armas químicas contra a população, o que ocorreu em agosto de 2013, os EUA ficaram desmoralizados.

“Ancara começou a abandonar sua política prévia de derrubar Assad e apoiar grupos religiosos de oposição”, descreve Volkan Özdemir, professor do Programa de Estudos Eurasiáticos da Universidade Técnica do Oriente Médio, em Ancara. “Em troca, a Rússia aprovou a operação turca Escudo do Eufrates no norte da Síria contra o Estado Islâmico e a guerrilha curda.”
Özdemir salienta que a Turquia e a Rússia começaram a coordenar suas atividades militares e de inteligência na região. “Graças a essa cooperação, as forças de Assad foram capazes de recuperar Alepo. As Forças Armadas turcas e seus aliados, incluindo membros do Exército Sírio Livre, formaram uma zona-tampão entre os cantões de Afrin e Kobane (redutos curdos), derrotando o EI.” Depois da queda de Alepo, as forças turcas tomaram a importante cidade de Al-Bab, antes reduto do EI, e que, se fosse ocupada pelos curdos, emendaria os seus dois cantões, formando um território curdo contínuo. Os curdos realizaram uma série de atentados na Turquia, enquanto as forças turcas consolidavam o domínio sobre Al-Bab, observa Özdemir.
Segundo Josh Rogin, colunista de temas de segurança do jornal The Washington Post, a Turquia buscou uma aprovação tácita da Rússia para sua intervenção no norte da Síria, e teria concordado em outubro em não opor resistência à ofensiva das forças leais a Assad contra Alepo, apoiadas por bombardeios russos. “Esse acordo criou as condições para mais cooperação entre a Turquia e a Rússia. Na falta de qualquer inicativa real do governo Obama, a Turquia decidiu então levar sua cooperação com a Rússia para o próximo nível.” O passo seguinte é uma reunião no Casaquistão entre representantes do regime sírio e da oposição por ele aceita, para discutir um cessar-fogo mais permanente. Americanos e europeus também não serão convidados.
John Kirby, porta-voz do Departamento de Estado, disse na terça-feira 20 que o secretário John Kerry não vê isso como uma exclusão: “Se não nos ter na sala pode levar finalmente a uma cessação de hostilidades por mais tempo e em uma área maior, permitindo a entrega de ajuda humanitária e a retomada de negociações políticas, o secretário não se importa de não participar”.
O que mais importa, agora, é como o governo de Donald Trump encarará essa nova realidade, de um processo liderado pela Rússia. E, com ele, o distanciamento da Turquia da estratégia da Otan para a Síria e região. “Se as forças pró-Eurásia vencerem, ninguém deve se surpreender com uma deterioração das relações Turquia-UE e até com o fim da participação do país na Otan”, adverte Özdemir. “Nesse cenário, duas potências eurasiáticas, Rússia e Turquia, poderiam formar uma aliança geopolítica estratégica na Eurásia.”
A aliança não faz sentido apenas no campo da defesa, mas também da economia. No dia 10 de outubro, durante o Congresso Mundial de Energia, em Istambul, Erdogan e Putin assinaram um compromisso de colocar em operação o gasoduto TurkStream até 30 de dezembro de 2019. O prazo é importante para a estatal russa Gazprom, que definiu que só usará até o final de 2019 o gasoduto que passa pela Ucrânia, para fornecer gás aos países do sudeste da Europa.
O TurkStream, que por enquanto é apenas um projeto, servirá de alternativa ao contrato com a Ucrânia, que, por razões políticas, está sujeito a constantes disputas. O acordo com a Turquia envolve também o fornecimento de gás russo com desconto. Os dois países discutiram também apressar a construção, pela Rússia, da usina nuclear de Akkuyu, a primeira da Turquia. E retomaram os vôos charter da Rússia para a Turquia, que haviam sido proibidos pelo governo russo depois da queda do caça, há um ano. Os turistas russos são uma importante fonte de receita para a Turquia.
Trump terá trabalho se quiser atrair a Turquia de volta para o raio de interesse dos EUA e da Otan. Se é que ele próprio não cairá nos braços da Rússia, no Oriente Médio.
Na esfera global, os primeiros sinais do futuro presidente americano indicam que a admiração recíproca com Putin não se traduzirá numa distensão. Na quinta-feira 22, depois que Putin enalteceu o poderio militar russo, Trump tuitou: “Os Estados Unidos devem se fortalecer muito e expandir sua capacidade nuclear até o tempo em que o mundo adquira consciência com relação às armas nucleares”.
A mensagem foi postada logo depois de Putin declarar, em uma reunião do Ministério da Defesa em Moscou: “Precisamos fortalecer o potencial militar das forças nucleares estratégicas, especialmente com complexos de mísseis que possam penetrar confiavelmente quaisquer sistemas de defesa de mísseis”. Foi uma referência aos planos da Otan de reforçar a defesa dos países do Leste Europeu. Incidentalmente, Trump disse durante a campanha que só defenderia os membros da Otan no Leste Europeu de uma eventual ameaça russa se eles arcassem com o custo da operação militar.
Putin assinou no dia 3 de outubro um decreto suspendendo um acordo firmado com os EUA em 2000, que previa que cada um queimasse em seus reatores 34 toneladas de plutônio, evitando assim que o combustível fosse usado na fabricação de armas nucleares. De acordo com o Departamento de Estado, as 68 toneladas de plutônio somadas serviriam para construir 17 mil ogivas. O acordo havia sido renovado em 2010. No decreto, Putin acusou os EUA de “ameaçar a estabilidade estratégica, com suas ações não-amistosas”. E acrescentou que seu governo precisava adotar “medidas urgentes para defender a segurança da Federação Russa”.
Uma corrida nuclear entre Estados Unidos e Rússia seria um retrocesso de mais de duas décadas, em que presidentes americanos, tanto democratas quanto republicanos, firmaram e mantiveram acordos com o Kremlin — e com Putin, no poder desde 1999 — para congelar e reduzir os estoques de armas nucleares.
A Síria servirá de teste dos ânimos de Trump e de Putin.

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