Crise em Kiev deixa diplomacia brasileira em posição conflitante

Ucrânia fornece ao Brasil know-how para fabricar e lançar foguetes da base de Alcântara, enquanto Rússia é parceira no Brics

KIEV – A brusca mudança de governo em Kiev enredou Brasília em uma teia de interesses conflitantes. O Brasil tem parceria estratégica tanto com a Ucrânia, com a qual desenvolve um programa de lançamento de foguetes, quanto com a Rússia, sua aliada no Brics, bloco de economias emergentes que inclui também a Índia, a China e a África do Sul. Além disso, o governo brasileiro está finalizando um acordo entre o Mercosul e a União Europeia, que disputa o tabuleiro ucraniano com a Rússia.

O lançamento do foguete Cyclone 4 – projeto binacional entre Brasil e Ucrânia – estava previsto para o ano que vem, na Base de Alcântara. Quando a crise começou, em novembro, o secretário-executivo do Ministério da Ciência e Tecnologia, Luiz Antonio Rodrigues Elias, preparava-se para ir a Kiev e o vice-primeiro-ministro ucraniano, Yuri Boyko, para visitar Brasília, onde conversaria sobre o programa. Ambas as viagens foram canceladas em razão da instabilidade na Ucrânia.

O Brasil ainda não se pronunciou diretamente sobre a queda de Viktor Yanukovich, no sábado, e a nomeação para o cargo, no domingo, do recém-eleito presidente do Parlamento, Oleksander Turchynov (mais informações na página A8). O Ministério das Relações Exteriores espera a formação do novo governo, prevista para hoje, e a consolidação das posições da Rússia e da União Europeia.

O Itamaraty divulgou uma nota no dia 19, em que dizia: “O governo brasileiro acompanha com preocupação a deterioração do quadro político e institucional na Ucrânia e lamenta profundamente as mortes ocorridas em Kiev. A crise política da Ucrânia deve ser equacionada pelos próprios ucranianos, de forma pacífica e com base no respeito às instituições e aos direitos humanos.”

Desde os tempos da antiga União Soviética, a Ucrânia detém tecnologia de ponta na área espacial. O acordo para o lançamento de foguetes ucranianos transportando satélites prevê a transferência dessa tecnologia para o Brasil e representa também a reabilitação da base de lançamento de Alcântara, cuja imagem foi prejudicada pela explosão que destruiu o foguete brasileiro VLS-1 V03, em agosto de 2003.

Em contrapartida, a Ucrânia ganhará acesso à base de lançamento de Alcântara, que, por sua posição próxima ao Equador, possibilita economia de 30% de combustível.

Em 2007, foi criada a empresa binacional Alcântara Cyclone Space, que hoje tem capital de US$ 487 milhões, divididos meio a meio, e é codirigida por Roberto Amaral, ex-ministro da Ciência e Tecnologia, e por Oleksandr Serdyuk, ex-diretor de Cooperação Internacional da Agência Espacial da Ucrânia.

O acordo foi firmado em 2002, durante visita do então presidente Fernando Henrique Cardoso a Kiev. Fernando Henrique vinha de um encontro em Moscou com Vladimir Putin, presidente entre 2000 e 2008, primeiro-ministro entre 2008 e 2012 e novamente presidente desde então. O discurso que fizera na Rússia, em favor de um mundo multipolar e do fortalecimento do Conselho de Segurança da ONU, do qual o Brasil se candidata a membro permanente, foi adaptado em Kiev.

Fernando Henrique assinalou que tanto a Ucrânia quanto o Brasil “se integram no mundo contemporâneo guardando características próprias”. No mesmo tom, o então presidente Leonid Kuchma disse que os dois países “seguem o próprio caminho e a própria razão”. Era uma referência ao desejo de autonomia do Brasil em relação aos EUA e da Ucrânia frente à Rússia, apenas uma década depois do fim da Guerra Fria. Passaram-se mais 12 anos e a Ucrânia ainda luta para conquistar essa autonomia.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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