‘Egípcios aceitarão bem a lei islâmica’

Membro da direção do partido salafista afirma que Sharia será adotada de forma “democrática”

CAIRO – Eles vivem na clandestinidade desde que os militares tomaram o poder no Egito, há seis décadas. Mais radicais que a Irmandade Muçulmana, nunca aceitaram participar do jogo político sob o controle da ditadura militar, marcadamente secularista. Pela primeira vez, os salafistas, fundamentalistas que defendem a “depuração” do Islã e o retorno aos ensinamentos do Profeta Maomé, têm um partido, Al-Nur (A Luz), e vão concorrer às eleições parlamentares que começam amanhã. São a face mais extrema da revolução e da nova democracia egípcia.

Em entrevista ao Estado, o economista Nader Bakkar, de 27 anos, membro da direção do Al-Nur, garante que o partido não pretende impor à força o cumprimento da Sharia, o código de conduta islâmica. “As coisas vêm gradualmente, com discussão, por meios democráticos, e temos certeza de que os egípcios aceitarão bem a Sharia”, diz ele. Mestre em administração e  dono de uma empresa de consultoria em gestão, Bakkar afirma que os princípios econômicos islâmicos, como a transferência de riqueza dos ricos para os pobres e o juro zero, também devem ser aplicados no país, mas de forma paulatina.

Vocês aceitam que os militares fiquem no poder até a realização da eleição presidencial no ano que vem?

Sim, mas com funções bem específicas, de manutenção da ordem, defesa do país e política externa. Não interferindo em todos os assuntos da vida cotidiana dos egípcios e deixando que o governo civil cuide dos assuntos internos, sem pressão, como a que exercia sobre o gabinete anterior.

Quais são as reais intenções dos militares, na sua opinião? Manter-se no poder por trás dos bastidores, como fizeram nas últimas seis décadas?

Na minha opinião, o conselho militar não acredita que o povo egípcio possa ter uma democracia e um regime civil, como tem que ser. É uma ideia preconcebida, de que os egípcios não conseguem se governar sem a intervenção militar nas questões internas e externas. 

O sr. acha que eles querem desempenhar o papel de barreira contra a influência islâmica, como aconteceu na Turquia?

Algumas pessoas aqui no Egito querem isso, mas agora não podemos dizer se o Conselho Supremo das Forças Armadas é a favor ou contra esse papel. 

O sr. não tem certeza de qual é a posição deles sobre um Estado islâmico?

Não quero responder.

Que tipo de influência o sr. acha que o Islã deve ter sobre a Constituição?

Esperamos nos tornar um Estado civil, não um Estado secular. Com leis que emanam da Sharia (justiça islâmica), já que é a principal cultura do povo aqui. Até mesmo dos cristãos. Mesmo antes da revolução, uma vez o tribunal daqui decidiu que um cristão podia se casar de novo e o papa condenou essa decisão, dizendo que queria que prevalecesse a Sharia, que se aplica a todo o país, e estabelece que os cidadãos devem obedecer à religião, não ao tribunal. E a Justiça concordou, porque é o que diz o Artigo 2º da Constituição, que as leis emanam da Sharia. Portanto, não temos nenhum conflito com os cristãos. Já se as leis liberais prevalecem, as pessoas podem se casar e divorciar quantas vezes quiserem, o que é contra a religião cristã. A Sharia diz que os cristãos podem consultar sua Igreja sobre todas as suas questões pessoais. 

Que outros aspectos da vida devem ser governados pelos princípios islâmicos?

Estamos falando genericamente de todos os princípios, Mas tudo vem de forma gradual. Queremos aplicar as normas da Sharia também na economia. Por exemplo, o zakat, a transferência de dinheiro dos ricos para os pobres. A eliminação dos juros, outro preceito islâmico, é a melhor medida para a economia. Até os maiores economistas reconhecem isso, assim como os manifestantes do movimento Ocupar Wall Street. Mas não podemos baixar o juro para zero de um dia para o outro. Seria catastrófico, até para os títulos da nossa dívida. Temos de respeitar os contratos assinados antes com outros países.  Também queremos incentivar, com empréstimos sem juros, as pequenas e médias empresas, como fez o presidente Lula no Brasil.

E o véu? Vocês querem mudar a maneira como as mulheres se vestem?

Não vamos impor nada ao povo egípcio. A Sharia desapareceu da vida das pessoas por muito tempo. Elas não têm uma visão completa da Sharia, não sabem como ela as beneficiará, as levará para o caminho certo. Então, não podemos dizer: ‘OK, pessoal, agora governamos vocês e vamos impor isso e aquilo’, coisas que eles nunca ouviram falar. As coisas vêm gradualmente, com discussão, por meios democráticos, e temos certeza de que os egípcios aceitarão bem a Sharia. 

Como era sua vida política antes da revolução? 

Tanto nós quanto os outros não tínhamos liberdade. Era como uma peça de teatro. O partido do governo eram o herói e todos os personagens. Nós éramos a platéia. Não podíamos fazer nada a não ser pagar os ingressos. Os partidos eram decorativos, não havia vida política. 

Qual a diferença entre vocês e a Irmandade Muçulmana?

Há diferenças estratégicas e táticas de como aplicar a ideologia que nós compartilhamos. 

Eles aceitavam fazer parte do Parlamento. São mais pragmáticos?

Talvez.

E vocês, mais guiados por princípios?

Sim. Dizíamos que não podíamos participar do teatro. Eles achavam que podiam extrair vantagens.

Quem está por trás dos ataques à minoria cristã no Egito?
É uma questão de lei. Se fôssemos um país que aplica as leis sobre todos – muçulmanos, coptas (cristãos), padres e xeques, tudo correria bem. Mas fazemos tudo com jeitinho. 

Publicado no Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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