Civis desafiam violência para testemunhar queda

Símbolos da ditadura ainda existem na capital líbia, esvaziada em parte por combates entre rebeldes e forças de Kadafi e pelo mês sagrado do Ramadã

TRÍPOLI – Na antiga Praça Verde, rebatizada pelos insurgentes de Praça dos Mártires, ainda está a estrutura de metal. Muamar Kadafi pretendia erguer ali, no coração de Trípoli, um gigantesco retrato de si mesmo, pintado numa lona estendida no chão da praça, na frente do Mar Mediterrâneo. “Não deu tempo”, diz sorrindo Mansur Khribish, um engenheiro eletricista de 50 anos, que passou os seis meses da guerra civil em Trípoli, à espera de seu desfecho. À pergunta sobre por que não saiu da cidade, Khribish, que trabalha para uma empresa líbio-síria de eletricidade, responde: “Você queria que eu perdesse o grande momento pelo qual esperei toda minha vida?”

Combatentes desfilaram ontem pela praça, celebrando a conquista de grande parte de Trípoli, no intervalo entre uma batalha e outra nos redutos ainda controlados por Kadafi. “Ande de cabeça erguida, você é um líbio livre”, gritavam eles a palavra de ordem usada no início do levante, há seis meses, no leste do país. Embora fizessem muito barulho, disparando para o alto fuzis-metralhadores e até mesmo canhões de artilharia montados sobre a carroceria de caminhonetes, eram poucos.

Trípoli é uma cidade semideserta, pela combinação do Ramadã, o mês sagrado em que os muçulmanos jejuam à luz do dia, e de tensão com as escaramuças e a instabilidade na cidade, abandonada por muitas famílias e partidários do regime.

A maior parte das pessoas na praça eram combatentes. Uma das exceções era Fawzie Hajjaj, uma viúva de 40 anos, que veio com seu filho, Khalil, de 9. “É o mesmo sentimento que os muçulmanos têm pela liberação de Meca”, comparou Fawzie, referindo-se à conquista do Profeta Maomé há 13 séculos. “É a sensação da vitória. Isso parecia antes impossível.” À pergunta sobre se sua família participou da insurgência, Fawzie respondeu: “Todas as famílias líbias têm revolucionários. As mulheres colaboram como podem: fazemos comida, ajudamos os feridos.”

Fawzie e Khalil, na Praça dos Mártires
(Foto: Lourival Sant’Anna)

“Trípoli foi liberada pelos moradores da cidade, antes de os revolucionários chegarem”, sublinhou Khribish. Ele lembra que a TV rebelde Líbia Al-Hurra (Líbia Livre) havia convocado uma grande manifestação no sábado, mas antes mesmo as pessoas começaram a sair às ruas, enfrentando as forças de segurança. Os combatentes rebeldes, vindo principalmente do oeste, começaram a ocupar Trípoli no domingo.

O movimento nas ruas da capital era controlado ontem por dezenas de bloqueios erguidos pelos rebeldes, quase todos sem fardas, muitos calçando chinelos de plástico, e bastante jovens. Vestígios do regime autoritário, que durou 42 anos, continuam por toda parte. Bandeiras verdes, a cor de Kadafi, ainda estão hasteadas em pontos menos acessíveis. O retrato de Kadafi em um mural foi crivado de balas.

Vivendo num vácuo de poder, os moradores de Trípoli aguardam agora a chegada do Conselho Nacional de Transição, instalado em Benghazi, a segunda maior cidade do país e reduto dos rebeldes. Os prédios da administração civil, como o Conselho de Ministros, onde deve instalar-se o governo de transição, foram preservados pelos bombardeios da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), que deram cobertura aos avanços rebeldes. Já os prédios identificados coma estrutura de defesa, como a Inteligência Estrangeira, o serviço secreto no exterior, foram destruídos pelos mísseis. 

Líderes oposicionistas da região oeste, onde fica Trípoli, foram incluídos secretamente no Conselho, e agora devem participar publicamente da transição. “Não temos medo do caos”, assegurou Khribish. “Trípoli se reorganizará mais depressa que Benghazi. A polícia se retirou das ruas assim que começou a revolução, e vai voltar agora para garantir a ordem.” Panfletos assinados pelas “Mulheres de 17 de Fevereiro” (data do início do levante), distribuídos ontem nas ruas de Trípoli, pediam: “Por favor, evitem perder sua liberdade de novo. Voltem para o trabalho. Reabram as lojas e não aumentem os preços. Ajudem uns aos outros a avançar para a próxima etapa.”

Publicado no Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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