Ditadura aprisionou parentes de rei deposto

Khalid Sherif aponta para sua mancha de sangue na cela, marcada após sessão de tortura

TRÍPOLI, Líbia – Desde o início do levante, o regime de Muamar Kadafi saiu em busca de narrativas que ocultassem a sua causa óbvia: a revolta popular com 42 anos de ditadura. Apesar da contradição entre as versões, falava-se de uma ofensiva da Al-Qaeda, de uma cruzada colonial cristã ocidental e de uma conspiração para restaurar a monarquia. Oito parentes do rei Idris Sanussi, deposto por Kadafi em 1969, sofreram na pele o esforço do aparato de segurança em provar essa última teoria. A execução dos oito primos, marcada para 1º de setembro, aniversário do golpe de Kadafi, só não aconteceu porque o regime caiu antes.

O dentista Khalid Sherif, de 38 anos, foi o primeiro manifestante preso em Trípoli, no primeiro protesto, dia 17 de fevereiro, em Fashlum, na região central da cidade. Rapidamente seus captores perceberam o valor do prisioneiro: seu tataravô era irmão do avô do rei Idris. Khalid, que faz doutorado em Viena, voltava do funeral de sua tia em Tobruk, terra natal de Idris e reduto oposicionista no extremo leste do país. Foi acusado de ter ido fazer contato com a “célula” monarquista de lá, para organizar a de Trípoli. A mesma acusação seria feita contra seus dois irmãos e cinco primos.

Khalid foi levado para o chamado Escritório Al-Nasser, quartel-general da Mukhabarat, a polícia secreta, no bairro de Abu Salim, no sul de Trípoli. “Nunca imaginei que nesse lugar funcionava a Mukhabarat”, disse Khalid, entrando com o repórter do Estado no complexo, cujos prédios administrativos foram destruídos por bombardeios da Otan, que mantiveram intactas as alas onde estavam os prisioneiros. Lá foi interrogado pelo próprio ministro do Interior do antigo governo, Mansur Daw. Os espancamentos e choques elétricos ficavam a cargo do chefe da Mukhabarat, Abdullah Mansur; do número 2, Tuhami Khalid, e do número 3, Abdel Hamid al-Sayeh.

Dois dias depois, seus irmãos Ashraf, de 22 anos, estudante de engenharia civil, e Mohamed, de 19, que faz curso para piloto, foram presos em casa. Cinco primos foram presos em seguida.

Abulgasem Sherif, pai de Khaled, Ashraf e Mohamed, conta que esteve “dez vezes” em Al-Nasser. “Eu sabia que não podia vê-los, mas só pedia para me dizerem se algum dos meus filhos estava lá. Eles respondiam que lá não havia presos.”

Khalid foi confinado numa cela de 1,80 metro por 90 centímetros pintada de preto, com um pequeno buraco no teto. “Era inverno, a chuva inundava a cela e ficava muito frio” recorda Khalid, que sofre do coração. Na parede da cela 2 ainda está a mancha de sangue feita quando ele apoiou o rosto, depois de uma sessão de tortura. Quando chegou, só havia outro prisioneiro na ala, na cela 10, um sudanês acusado de sequestrar um avião. “Ele estava confinado havia três anos, e sua mente estava confusa.” Os presos podiam sair três vezes por dia para ir ao banheiro no fim do corredor, mas só tinham dois minutos para isso: um guarda batia 120 vezes no chão e ao final os obrigava a sair. Khalid ficou 50 dias sem tomar banho. “Os guardas vinham de máscara, por causa do mau cheiro.”

No terceiro dia, Khalid ouviu um homem chorando na cela ao lado. Procurou consolá-lo: “Sairemos daqui um dia.” Seu irmão Ashraf reconheceu sua voz. Os guardas se deram conta e o transferiram para outra ala. Disseram que Mohamed tinha sido solto, mas na verdade ele foi levado para a prisão de Ein Zara, no sudeste de Trípoli.

Depois de 74 dias, Khalid foi transferido para a prisão de Abu Salim, a mais temida da Líbia. Ashraf ficou 85 dias e também foi para Abu Salim. Sensibilizados pela doença cardíaca de Khalid – que recebeu os remédios de que necessitava, embora vencidos – os guardas colocaram discretamente os irmãos juntos, numa cela de 2 metros por 3, com outros dois presos. Tinham de revezar-se para deitar.

“Havia um guarda muito mau, chamado Issam”, recorda Khalid. Uma vez ele disse a Issam: “Por Deus, não nos trate assim, Somos humanos.” O guarda respondeu: “Deus não é importante. Meu deus é Kadafi.” Seu irmão Mohamed conta uma história semelhante. Numa sessão em que era torturado por uma mulher identificada como coronel, ele disse: “Juro por Deus que não participo de nenhuma conspiração.” Ela respondeu: “Deus não entra aqui. Ele fica do lado de fora.”

Os ex-presos têm uma página no Facebook, que já conta 800 participantes, e recebe cerca de 10 novos por dia, diz Khalid. Os que estiveram no Escritório Nasser têm trocado mensagens e decidiram que, se encontrarem Issam, vão matá-lo.

Os três irmãos só foram soltos quando as forças rebeldes invadiram as respectivas prisões: Mohamed, em Ein Zara, no dia 21 de agosto; Khalid e Ashraf, em Abu Salim, dia 25. Ao fugir, os guardas contaram aos presos que os rebeldes estavam chegando. “Quando saímos, pensamos que os moradores de Abu Salim iam nos matar, porque nos tinham dito que o bairro era reduto pró-Kadafi”, lembra Khalid. “Mas todos estavam felizes lá fora. Deram-nos água e disseram: ‘Graças a Deus é o fim de Kadafi. Vão para suas casas’.”

Publicado no Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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