‘Fui o último a sair do hospital de Ras Lanuf’

O dia começou com uma boa notícia. Liguei para o embaixador do Brasil em Trípoli, George Ney Fernandes, quando ele acabava de descobrir o paradeiro do meu colega Andrei Netto, desaparecido havia uma semana:

RAS LANUF, Líbia – Sabrata, 60 km a oeste da capital, preso por membros das kataeb, as brigadas leais a Muamar Kadafi. 

Os foguetes disparados por terra sacudiam a casa em que estávamos em Ras Lanuf, e fiz piada com os cinco líbios – dois médicos, um voluntário do Crescente Vermelho e meus dois guias – que a dividiam comigo, lembrando que, no dia em que chegamos, sábado, subíamos a cada dez minutos no topo do sobrado, quando ouvíamos o avião se aproximando, para ver onde os mísseis iam cair. Agora continuávamos conversando. Havíamos nos acostumado.

Deixamos o carro no estacionamento do hospital e fomos ver um prédio residencial de três andares que tinha sido atingido. O foguete fez um buraco na parede de concreto, no último andar. O impacto derrubou as vigas de aço que sustentavam o teto. Não havia ninguém no prédio. Sem água e sob bombardeio, Ras Lanuf foi abandonada por seus 10 mil moradores no início da semana.

No hospital, feridos e mortos chegavam em ambulâncias do Crescente Vermelho, como de costume, mas havia um nervosismo diferente dos outros dias. Os foguetes caíam cada vez mais perto do hospital. “A situação mudou”, disse eu a Sohaib, um dos meus guias. “Precisamos pensar em sair daqui.” Às 13 horas (8 horas em Brasília), fui para o carro enviar twitts para o portal do Estadão, conectando à internet via satélite. Daí a 15 minutos, Sohaib passou pelo carro dizendo que ia rezar na mesquita a 300 metros do hospital. “Se você sair do carro, verifique se trancou bem, porque tem um fuzil aí dentro”, pediu. Era de um dos médicos.

Às 13h40, o bombardeio se intensificou. Os foguetes caíam de todos os lados: atrás do estacionamento, na avenida em frente ao hospital, na mesquita. Estavam obviamente mirando no hospital. Coloquei o notebook e a antena do satélite na mochila , saí do carro, tranquei, verifiquei se tinha trancado, e saí correndo para a rua lateral, em direção ao prédio atingido de manhã.

As caminhonetes e carros de passeio dos combatentes que estavam no hospital e algumas ambulâncias recolhiam as pessoas. Vi os dois fotógrafos e um cinegrafista com os quais conversara antes subindo na carroceria de uma caminhonete. Vários homens gritavam e acenavam para eu entrar num dos veículos.

Eu não podia ir embora com a chave do carro e deixar Sohaib na mesquita. Encostei-me na parede do prédio, enquanto filmava os foguetes caindo, os combatentes disparando seus fuzis para o alto e a desorientação de todos. Cada um age de acordo com seu instinto nesses momentos.

Sohaib veio correndo da mesquita, e eu o chamei. Propus entrarmos no prédio, mas ele e outros homens acharam que seria atingido de novo. Então propus corrermos para a mesquita.

Atravessamos, abaixados, correndo, os 300 metros de terra e pulamos a mureta em redor da mesquita, eu com a mochila pesada nas costas e segurando com uma mão a câmera pendurada no pescoço. Tirei os sapatos e entrei na mesquita. Sohaib ficou do lado de fora. Ele estava lá dentro quando o foguete atingiu a mesquita e não a achava segura. Os foguetes usados pelos líbios, do tipo Grad, são mortalmente imprecisos.

Dentro da mesquita, cerca de 20 homens rezavam. Alguns choravam. Um deles me perguntou se eu era muçulmano. Respondi que não. “Saia”, disse apenas. Voltei para o pátio. Fotografei um foguete caído no chão e o estrago feito por ele no topo da mesquita. O homem que tinha me expulsado passou por mim. “Se você for a uma igreja no Brasil, será bem recebido”, eu disse a ele. “OK”, respondeu.

Entrei de volta na mesquita e me sentei no chão. Alguns minutos depois, um médico entrou e me chamou: “O hospital está sendo esvaziado. Vamos levar os feridos para Ajdabiya (200 km a leste). Queremos que você venha fotografar um homem cujo crânio e rosto foram arrancados.Depois pode ir embora conosco.” Ele fez uma prece e saímos. Cruzamos correndo de novo os 300 metros de terra. Sohaib me ligou. Estava no carro, a caminho da estrada. “Vou de ambulância”, disse eu.

Os foguetes continuavam caindo perto. Um fragmento havia atingido uma cadeira de rodas na entrada do hospital, O corpo, com o crânio e boa parte do rosto arrancados, estava numa maca, ao final de um rastro de sangue no piso de granito. Abriram o saco plástico em que estava o cérebro, para eu fotografar. “Veja o que Kadafi faz com o povo”, gritou um dos combatentes.

O hospital estava vazio. A última ambulância era a que levaria o corpo que fotografei, o médico que foi me chamar e eu. Então ouvi uma tentativa de pronunciar meu sobrenome: “Santos!” Era um dos dois médicos que estavam na mesma que eu. Salah, meu outro guia, estava com ele, noutro carro. Dispensei a ambulância. Fui o último a sair do hospital de Ras Lanuf.

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