Leste da Líbia procura consolidar autonomia

Na Líbia de Muamar Kadafi, não havia prefeitos ou governadores. As decisões nas cidades eram tomadas por representantes de Kadafi, que em geral não tinham cargos bem definidos. Eram espécies de “enviados”, que muitas vezes nem pertenciam àquele lugar; contavam com a confiança do líder, e era isso o que importava. Quando alguém perguntava por que determinada rua não estava asfaltada, ou qualquer outro aspecto da vida cotidiana das cidades, a resposta começava com: “Porque Kadafi…” Era como se o ditador estivesse em todos os lugares, decidindo as coisas mais triviais.

O símbolo maior disso foi Hoda bin Amr, supervisora da aplicação do orçamento por todos os ministérios na região de Benghazi. Hoda ganhou a confiança de Kadafi durante o enforcamento de estudantes que tinham participado de um protesto contra o regime, por volta de 1987. Um dos condenados continuava se contorcendo, pendurado pelo pescoço. Hoda o agarrou pela cintura e puxou para baixo, para terminar de matá-lo. A partir daí passou a ter cargos importantes no governo. Sua casa no bairro elegante de Tapalino foi incendiada durante o levante em Benghazi, em fevereiro do ano passado.

Benghazi, como a cidade mais importante da costa leste, com sua reputação de “oposicionista”,  sentia-se especialmente castigada pelo ditador. A cidade coleciona terríveis histórias de punição coletiva, como a vez em que seu esgoto foi propositalmente lançado sobre o seu belo lago; quando 400 bebês foram infectados pelo vírus da aids; quando as forças de segurança abriram fogo no estádio contra a torcida de seu principal time,  Al-Ahli, que protestava contra a presença de Saadi, filho de Kadafi, no time adversário, Al-Ahel, de Trípoli.

A infra-estrutura, os serviços públicos e os salários eram bem melhores em Trípoli (1,7 milhão de habitantes) que em Benghazi (1 milhão), cujos moradores se sentiam cidadãos de segunda classe. “Trabalhei uma época em Trípoli e constatei o que todos dizem”, disse ao Estado o contador Sohaib Bogerma, de 27 anos, empregado numa firma escocesa. “Pela mesma função pagam-se 200 dinares (US$ 160) aqui e 1.200 dinares (US$ 960) lá.”

O leste todo se ressentia do tratamento desigual, e considerava que seu petróleo, suas refinarias e seus portos sustentavam a economia do país, enquanto os benefícios eram drenados para o oeste.

Antes de Kadafi assumir o poder, em 1969, a Líbia era uma federação, com ampla autonomia regional. De origem grega, os nomes das duas regiões costeiras – Cirenaica e Tripolitânia –remontam à antiguidade.

Considerando-se tudo isso, é surpreendente que só agora, um ano depois do levante no leste, a região dê vazão ao seu desejo de autonomia. E se isso não aconteceu antes foi pelo zelo dos habitantes do leste pela preservação da unidade dos líbios, primeiro no esforço para derrubar Kadafi, e depois para consolidar a transição.

Proveniente de uma tribo inexpressiva, Al-Gaddadfa, Kadafi procurou aplastar as lealdades tribais, com uma ideologia nacionalista que mal encobria suas próprias alianças com as principais tribos, a começar pela maior delas, Warfallah, baseada no oeste.

Em contraste, a revolução foi lançada no leste.  Mustafa Abdul Jalil, que deixou o cargo de ministro da Justiça no começo da revolução e se tornou presidente do Conselho Nacional de Transição, pertence à tribo Baraasi, proveniente de Al-Bayda, no leste (como aliás a viúva de Kadafi, Safia Farkash).

Além dos aspectos geográficos, econômicos e tribais, há ainda um forte componente político-religioso: o leste é marcadamente conservador, reduto do fundamentalismo islâmico na Líbia. Foi do porto de Derna, no leste, por exemplo, que partiram os mujaheddin líbios para a jihad no Afeganistão, nos anos 80.

O rei Idris Senussi, deposto por Kadafi, cujo parente, Ahmed Zubair, assumiu ontem a presidência do Conselho Interino de Cirenaica, nasceu em Jaghbub, no sudeste líbio, onde seu avô fundara uma seita islâmica, e assentou sua casa real em Tobruk, no extremo leste do país.

O fantasma do separatismo era usado pela propaganda do regime durante a guerra civil, quando o leste era ocupado pelos rebeldes e o oeste continuava sob controle dos kadafistas. Em resposta, cartazes espalhados por Benghazi postulavam: “Líbia, um clã. Trípoli, nossa capital.”

Consolidada a revolução, e enquanto vai se conformando o futuro Estado líbio, os habitantes do leste buscam agora assegurar a restauração do federalismo e, com ele, de sua autonomia. Não é necessário que esse movimento resulte na separação do leste. Não é esse o desejo da imensa maioria de seus habitantes. A menos que o governo central e o oeste reajam de forma drástica.

Publicado no Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

Deixe o seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*