Médico chora ao lembrar das vítimas que não conseguiu salvar

Como cirurgião do Centro Médico de Benghazi (CMB), um dos principais hospitais da cidade, Ezedin Bosedra, de 34 anos, já tinha visto muita coisa. Mas as três últimas semanas são indescritíveis para ele.

BENGHAZI – Bosedra interrompe várias vezes seu relato ao Estado do que viu em Brega, Ras Lanuf e Ajdabiya para chorar. Nesse período, ele viu morrer nas suas mãos crianças e adolescentes, tratou de combatentes rebeldes e salvou a vida de soldados das forças leais a Muamar Kadafi, até ser perseguido por elas, tendo de fugir de Ajdabiya.

Bosedra foi num grupo de cinco médicos do BMC há três semanas para Brega, 230 km a oeste de Benghazi, onde ocorreu a primeira batalha da região leste entre as kataeb (brigadas leais ao regime) e mercenários africanos, de um lado, e os combatentes rebeldes, de outro. Foi a primeira vitória dos rebeldes. De lá, foram para Ras Lanuf, 150 km mais a oeste, cenário de uma batalha que durou uma semana.

Foi Bosedra quem recebeu os sobreviventes do bombardeio ao casario de Bisher, onde viviam apenas 15 famílias, entre Brega e Ras Lanuf, logo no início da contra-ofensiva das kataeb, no dia 5. Duas casas e um carro foram atingidos pelos foguetes. O médico chora ao se lembrar de um bebê com o cérebro de fora. “Lá não havia combatentes, só famílias.”

Em Ras Lanuf, Bosedra teve o primeiro contato com os soldados das kataeb. Combatentes rebeldes voltaram da frente de batalha entre Ras Lanuf e Bin Jawad, 45 km a oeste, dizendo que havia inimigos feridos em um carro. Bosedra chegou ao veículo e encontrou três corpos e um sobrevivente. Quando retirava o ferido do carro para a ambulância, foguetes caíram ao redor. Um deles arrancou a porta da ambulância e seus estilhaços feriram as costas do paramédico, com o qual ele tinha acabado de trocar de lugar para segurar o pescoço do soldado ferido.

O soldado se chamava Mohamed e era de Hisha, entre Bin Jawad e Sirt, terra natal de Kadafi e reduto de sua tribo. O médico emprestou seu celular para Mohamed ligar para sua mãe em Hisha. O soldado chorou e pediu desculpas, Disse que seu comandante lhes havia dito que iam salvar civis de um cerco rebelde. Nos dias que se seguiram, parentes de Mohamed continuaram ligando para o celular de Bosedra. Duvidavam: se o soldado estava em mãos rebeldes, como poderia ter sido salvo? “Eles assistiam na TV estatal que estávamos matando todo mundo”, recorda o médico.

Bosedra estava no grupo dos 15 médicos que tiveram de sair às pressas do hospital de Ras Lanuf, alvo de foguetes durante várias horas, no dia 10, conforme o Estado testemunhou. À pergunta sobre por que as forças de Kadafi alvejavam hospitais, como fariam mais adiante também com o de Ajdabiya, Bosedra respondeu: “Acho que não queriam que nós médicos sobrevivêssemos, porque vimos coisas demais.”

No hospital de Ajdabiya, Bosedra conta que testemunhou a destruição completa de dois bairros residenciais – o que coincide com outros relatos de moradores. Segundo o médico, 55 pessoas morreram nesses bombardeios. Lá ele também ouviu a mesma história da ordem para salvar civis das mãos de rebeldes, de outros dois soldados das kataeb que atendeu. Um terceiro soldado morreu. “Tentei salvá-lo”, mas não consegui, diz Bosedra. “Eu tratava todos igualmente. Sou apenas um médico.”

Ele conta que era o único cirurgião experiente da equipe, e o único que podia conduzir operações. Por isso, teve de transferir um combatente ferido por estilhaços de foguete no abdome para Benghazi, enquanto operava outro paciente. Ele chora ao contar que a ambulância levando o ferido foi parada numa das barreiras erguidas pelas kataeb na saída da cidade. Retiraram o ferido do veículo e o executaram. Outro ferido menos grave foi arrancado de outra ambulância e levado prisioneiro.

O hospital também era alvo dos foguetes, e por isso ele teve de transferir as operações do centro cirúrgico, que era mais vulnerável, porque ficava no segundo andar, para o ambulatório, no térreo. Quando operava um homem cujo abdome foi dilacerado por estilhaços, um foguete atingiu o hospital. Com o impacto da explosão, seus intestinos saltaram para fora e o homem morreu. Um segundo foguete caiu sobre o alojamento e um terceiro, nos fundos do hospital. Os médicos fugiram pelos fundos.

Na segunda-feira, a direção do hospital de Ajdabiya ordenou que os médicos que tinham estado em Brega e Ras Lanuf voltassem para Benghazi, porque havia a informação de que as forças de Kadafi viriam buscá-los. Bosedra e sua equipe vieram em cinco ambulâncias, com seis feridos, incluindo uma adolescente cuja casa foi atingida por um foguete, matando sua mãe e ferindo sua perna direita, que teria de ser amputada. “Não pude fazer nada por ela”, soluça Bosedra. Saíram às 10 horas numa ambulância pelo lado sul, que não tinha presença das kataeb. “Ajdabiya era uma cidade fantasma.”

Publicado no Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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