Rede de espionagem dá sobrevida a Kadafi

Em Benghazi, principal reduto rebelde, 8 mil pessoas atuam contra a revolução; 30 foram presos e alguns, executados

BENGHAZI – Quando preparava sua ofensiva contra Benghazi, há cerca de dez dias, Muamar Kadafi disse que não seriam as suas tropas que retomariam a “capital rebelde”, mas sua própria gente. Naquele estágio, parecia uma afirmação intrigante – se não delirante -, considerando o apoio maciço que a “revolução” tinha no seu berço e tradicional reduto oposicionista.

Quando o formidável comboio de 25 tanques, 24 caminhões, 3 ônibus e outros 32 veículos se aproximava da cidade há uma semana – antes de ser destruído pelo primeiro bombardeio francês -, os benghazis tiveram a amarga compreensão do que o ditador queria dizer. Células adormecidas dos “Lejan Thowria”, literalmente “Comitês Revolucionários”, que haviam desaparecido desde o início do levante, havia um mês, despertaram para aterrorizar a cidade.

“Os comitês impuseram uma ameaça maior que as tropas, porque elas têm uma posição clara, enquanto que eles estavam nos atacando pelas costas”, compara Abdul-Hafiz Ghoga , vice-presidente do Conselho Provisório Líbio. Esta é a característica sinistra desses tentáculos invisíveis do regime de Kadafi: os líbios não sabiam – e em alguma medida ainda não sabem – quem eles são, de onde os espreitam nem de onde podem atacar. Sua única certeza é de que estão ali e fazem parte de seu cotidiano. O medo e a invisibilidade os multiplicam.

Serjan, um professor de biologia de 26 anos, conta que os moradores de seu quarteirão ficaram perplexos quando um vizinho “simpático e querido por todos” entrou em ação na manhã do dia 19, sábado, revelando sua identidade de Lejan Thowria. “Nós o matamos”, diz Serjan com simplicidade.

O que diferencia este de outros momentos de crise na Líbia é que milhares de cidadãos comuns também têm fuzis retirados dos quartéis durante o levante, e não é mais só a milícia dos comitês que está armada.

Hoje, grande parte de seus integrantes é conhecida, não só porque eles se revelaram no dia em que espalharam o pavor em Benghazi, disparando fuzis e granadas a esmo para matar o maior número possível de civis. Mas porque listas de cerca de 8 mil nomes desses colaboradores foram encontradas no Ministério do Interior. Segundo Ghoga, apenas 300 deles ofereciam perigo em Benghazi. Desses, 30 foram presos, e alguns líderes, colocados sob prisão domiciliar. Outros têm sido executados.

“Demos-lhes chances de reconciliação no começo da revolução”, recordou Ghoga, advogado de direitos humanos. “Agora eles encontrarão o seu destino desafortunado.” Na noite de sexta para sábado, houve intensos tiroteios e disparos de artilharia na cidade entre rebeldes e milicianos. A cidade de 1 milhão de habitantes é cenário de uma caçada humana a essa “quinta coluna”, que em muitos casos se refugia em escolas, na Universidade de Garyounis, em hospitais e até no zoológico, durante confrontos com os rebeldes.

Os combatentes rebeldes ergueram barreiras em Benghazi, que se intensificam à noite, para conter a ação desses milicianos. Albaraa Catos, um estudante de 16 anos que atua numa dessas barreiras no seu bairro, conta que uma caminhonete passou por ele com quatro mulheres que levavam fuzis dentro. Ele telefonou para um amigo que estava na barreira seguinte. Tentaram pará-las e elas abriram fogo. Duas mulheres e um rebelde ficaram feridos. “Elas eram membros dos Lejan Thowria”, espanta-se Catos, habituado a tarefas mais domésticas para mulheres, na conservadora sociedade líbia.

Mas a capilaridade dos comitês revolucionários – inspirados no modelo cubano – é muito maior. Sabri Mohamed conta que, quando era estudante de medicina, foi membro dos Lejan Thowria durante um ano. “Era a única forma de conseguir bolsa de estudos”, explica ele. “Não importavam nossas notas, nada. Tínhamos de ser dos Lejan Thowria.” O chefe do Departamento de Radiologia do Hospital Hawari foi preso depois do levante. Pertencia aos comitês.

O Centro Médico de Benghazi (CBM), outro importante hospital da cidade, era um reduto dos comitês. Seu diretor-geral, Mohamed Jibril, usou ambulâncias do hospital para transportar mercenários africanos do aeroporto para um quartel de Benghazi, no início do levante. Parte deles acabou se refugiando no hospital. O diretor-administrativo, Omar al-Sudani, era um dos principais dirigentes da organização. Foi preso no domingo, dentro do hospital.

Nos primeiros dias do levante, nas cidades do leste, os manifestantes atacaram dois lugares: o quartel das kataeb (as brigadas de elite) e a sede dos comitês. “Todo mundo odiava quem trabalhava aqui, porque éramos todos considerados membros dos Lejan Thowria”, diz Ezedin Bosedra, de 34 anos, cirurgião do CBM. Bosedra foi aluno de Al-Sudani, que acumulava os cargos de diretor do Departamento de Saúde Pública da Faculdade de Medicina e de secretário do Meio Ambiente de Benghazi. “Ele não ensinava nada, porque não sabia nada”, diz Bosedra, que questiona se Al-Sudani teve de fato formação médica. “Ele é gastroenterologista e nunca fez uma endoscopia. Como ninguém ia às aulas, ele fotografou todos os alunos e passou a obrigá-los a freqüentá-las.”

“Quem era dos Lejan Thowria fazia tudo o que Kadafi mandava, e tinha tudo o que queria”, resume o cirurgião. É, num certo sentido, um resumo do próprio regime.

Publicado no Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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