Dois mundos se enfrentam na Tunísia

A uma hora de vôo da Itália, país muçulmano vive dilema entre rigidez fundamentalista e acomodação ao liberalismo ocidental

 TÚNIS — Rashid Belangdeh mergulha um pedaço de pão no molho do prato do interlocutor, enquanto discorre sobre sua religião e seu país, num restaurante de Túnis. “Acredite, meu amigo, os islâmicos tornariam todos nós iguais, e é isso que os capitalistas, os ricos, não querem.” Belangdeh, bérbere, de família nômade do sul da Tunísia, não compreende a resistência e mesmo o pavor que muitos de seus compatriotas nutrem em relação ao movimento fundamentalista.

Toma como exemplo a Arábia Saudita: “Lá, todos são iguais, podem comprar sua casa, seu carro…” À objeção de que aquele país é rico em petróleo, retruca: “Não é só por isso, é porque o islamismo é posto em prática lá.”

Se chegarem ao poder, “é claro que os islâmicos imporão a todo o país os preceitos muçulmanos, porque são justos”, acredita o bérbere, que faz serviços pesados para os hotéis tunisinos. “Proibirão a bebida porque o bêbado é um perigo para a sociedade.” E quanto às mulheres? “Aqui é diferente da Europa. Os homens querem as mulheres para cuidar da casa e da família.” Belangdeh, 28 anos, é casado com sua prima, e tem dois filhos.

Ele ignora que o grupo fundamentalista Movimento da Tendência Islâmica (En-Nahdha) esteja proibido como partido político. “Mas eles têm deputados no Parlamento e participam do governo.” Candidatos independentes ligados ao En-Nahdha foram autorizados a participar das eleições de abril de 1989, mas o partido do presidente Zine el-Abidine Ben Ali, União Constitucional Democrática, ganhou todas as cadeiras.

Quanto ao governo, de fato há nele funcionários integristas infiltrados, confirma um diplomata ocidental. Esses integristas disfarçados não usam as longas barbas que caracterizam os religiosos. Mas, para reconhecê-los, é fácil, ensina o diplomata. “Se sua mulher usar as vestes religiosas com todo o corpo e a cabeça cobertos, não há dúvida.”

O governo mantém esses funcionários — alguns de alto escalão — pela mesma razão por que não condenou à morte recentemente, como queria o promotor, dezenas de militantes fundamentalistas acusados de complô contra o Estado. “A situação ficaria explosiva”, diz o diplomata.

Sob forte influência da França, que a colonizou, e a apenas uma hora de vôo da Itália, a Tunísia é um dos países árabes mais ocidentalizados, o único onde a poligamia é proibida — lei que, aliás, segundo corre em Túnis, o presidente, com fama de namorador, quer reverter.

Mas o equilíbrio deste país — em cujas praias mediterrâneas é possível ver uma européia topless ao lado de uma muçulmana com o corpo todo coberto — é dos mais frágeis. Sua população, como a de todo o Norte da África, vê-se confrontada com duas grandes escolhas: o liberalismo, identificado com o bem-estar material, e o fundamentalismo, a remissão eterna.

Buscando desesperadamente a primeira alternativa, o presidente Ben Ali obedece a todas as determinações do FMI, segura os gastos, mantém a inflação nos 8% (oficiais, 15% reais) e o dinar tunisiano acima do dólar (US$ 1 compra apenas 84 centavos de dinar). Mas o desemprego é de 12%, e é ai que os fundamentalistas podem atuar. Com simpatia.

“Islamismo é uma questão de coração”, emociona-se o bérbere Belangdeh. “Se você vê o presidente do partido islâmico, não acredita que seja um homem tão importante: veste-se com simplicidade, ajoelha-se para rezar, fala como nós, é um homem do povo, não é falso, segue a religião à risca e crê nela.” Quem está no poder se diz muçulmano, mas não pratica o islamismo, reclama Belangdeh. O islamismo, portanto, chegará ao poder, garante, pela escolha do povo, não pela força.

 É o que temem a classe média e os setores ocidentalizados. “A Tunísia não cometeu o erro da Argélia”, festeja um tunisiano que mora na França, referindo-se à legalização da Frente Islâmica de Salvação, grupo fundamentalista que ia obtendo maioria absoluta no Parlamento argelino em janeiro quando as eleições foram canceladas. “O povo é fácil de influenciar, e eles têm muito dinheiro vindo do Irã e da Líbia”, diz ele.

Publicado no Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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