Com economia cambaleante, iranianos perdem a paciência com o governo

No Irã, o índice geral de desemprego é de 12,6%, mas, entre os jovens de 15 a 29 anos; cartazes perdem liberdade e a morte do líder espiritual Ali Khamenei

PROTESTO NA UNIVERSIDADE DE TEERÃ: nas ruas da cidade, algumas mulheres arrancaram seus véus e os agitaram como se fossem bandeiras exigindo liberdade | Reuters

E os iranianos perderam a paciência. Protestos iniciados na quinta-feira 28 em Mashhad, a segunda maior do país, espalharam-se rapidamente. Até a manhã desta terça-feira, ao menos 21 pessoas haviam sido mortas em todo o país e cerca de 450, detidas, somente em Teerã. Os aplicativos Telegram e Instagram, usados para chamar os manifestantes e divulgar imagens dos protestos, chegaram a ser tirados do ar.

Para que os iranianos saiam às ruas e enfrentem a polícia, é preciso que estejam muito indignados: as famílias de alguns dos presos nas últimas grandes manifestações, em 2009, nunca mais tiveram notícias deles.

O presidente Hassan Rouhani defendeu o direito de protestar, desde que não violem a lei. Já o general Esmaeil Kowsari, subcomandante em Teerã da Guarda Revolucionária, braço armado do líder espiritual Ali Khamenei, advertiu: “Se esta situação continuar, as autoridades com certeza tomarão algumas decisões, e naquele instante este negócio estará terminado”.

Havia muito tempo que vinham ocorrendo protestos pontuais, em geral com apenas dezenas de pessoas, motivados pelo alto custo de vida e o desemprego. E principalmente pela frustração de expectativas. Ao “vender” para a população o acordo nuclear firmado em 2015, Rouhani prometeu que o fim das sanções ao petróleo iraniano traria uma era de prosperidade. Ela não veio.

A inflação caiu de 34% para 10%, mas o poder de compra dos iranianos não aumentou, por causa do alto desemprego e dos salários deprimidos. O índice geral de desemprego é de 12,6%, mas, entre os jovens de 15 a 29 anos, bate em 24%, segundo dados oficiais.

O Fundo Monetário Internacional estima que a economia iraniana cresça 4,2% nos 12 meses de abril de 2017 a março deste ano. Mas isso não se traduz em vagas suficientes, por causa do elevado estoque de desemprego e do grande contingente de jovens entrando no mercado de trabalho. A taxa de natalidade iraniana está caindo, mas em 2000, período em que nasceram os que estão entrando no mercado de trabalho, era de 2 filhos por mulher.

O gatilho para os protestos, aparentemente, não teve muito a ver com a economia. Mashhad é a base do clérigo conservador Ebrahim Raisi, principal adversário de Rouhani na eleição presidencial de maio do ano passado. Seu sogro, o pregador radical Ahmad Alamolhoda, tem criticado duramente o governo por pequenas aberturas liberais, como a permissão para a realização de shows.

Na véspera do protesto em Mashhad, no nordeste do Irã, a polícia de Teerã anunciou que não conduziria mais para a prisão mulheres que estivessem com a cabeça semi-descoberta pelo véu islâmico. Em vez disso, elas irão para cursos de “reeducação moral”.

Nos primeiros protestos, em Mashhad, foram gritadas palavras de ordem contra as tímidas reformas liberais de Rouhani, e também contra as promessas não cumpridas no campo econômico. Esse na verdade foi o rastilho da pólvora.

Estava sendo discutida no Parlamento a proposta de orçamento para o próximo ano fiscal (abril deste ano a março de 2019), que prevê cortes de até 50% nos subsídios para alimentos, combustíveis e serviços públicos, e ainda a eliminação de transferências em dinheiro para os mais pobres.

Essas medidas foram introduzidas para atenuar o impacto das sanções do petróleo a partir de 2006, que desvalorizaram o rial o causaram explosão nos preços.

Em contrapartida, as verbas para instituições religiosas, protegidas pela teocracia, foram preservadas. Nos dias que se seguiram, as manifestações se espalharam, e as palavras de ordem passaram a mirar também no líder espiritual e no regime instalado em 1979: “Morte ao ditador” e “Não queremos república islâmica”. Cartazes de Khamenei foram rasgados, em cenas bastante incomuns. Algumas mulheres arrancaram seus véus e os agitaram como se fossem bandeiras exigindo liberdade.

De quinta para segunda-feira, houve 12 mortes, segundo informações oficiais. Na noite de segunda para terça, foram mais 9. Entre esses mortos, estão seis pessoas que tentaram invadir uma delegacia de polícia na cidade de Qahderijan, na província de Isfahan, segundo a TV estatal. Aparentemente os manifestantes tentavam confiscar armas. Isso também não é comum. O contexto de outras mortes não foi esclarecido. As autoridades disseram que algumas foram causadas por disparos de espingardas de caça, comuns no meio rural.

O vice-presidente Eshaq Jahangiri ironizou, referindo-se ao fato de os conservadores terem iniciado os protestos contra o governo do qual ele faz parte: “Quando um movimento social e político é lançado nas ruas, aqueles que o começaram não serão necessariamente capazes de controlá-lo no final. Os que estão por trás desses eventos queimarão seus dedos. Eles pensam que atingirão o governo”.

O próprio Rouhani defendeu o direito dos manifestantes: “É preciso abrir espaço para protestos e críticas legais”. E admitiu: “Nossa economia requer uma grande cirurgia corretiva”.

Atividades econômicas lucrativas, como bancos, indústria e comércio, estão nas mãos da Guarda Revolucionária. Os investimentos externos não chegam também porque os bancos têm medo, sobretudo depois que o francês BNP Paribas tomou uma multa de quase 9 bilhões de dólares em 2015 da Justiça americana, por intermediar negócios com o Irã, Cuba e Sudão.

Rouhani foi eleito pela primeira vez em 2013, quando as sanções tinham enorme impacto sobre o poder de compra dos iranianos. O líder espiritual, que controla as instituições que filtram os candidatos a presidente e a deputados, permitiu sua eleição por considerar que a retórica nacionalista e desafiante de Mahmoud Ahmadinejad, presidente nos oito anos anteriores, havia sido um tiro no pé, tanto para a segurança quanto para a economia do Irã.

Além disso, Ahmadinejad tinha entrado numa disputa de influência sobre a Guarda Revolucionária com Khamenei, que bancou sua reeleição, aparentemente fraudulenta, em 2009. O anúncio da vitória de Ahmadinejad, contra as evidências nas ruas (não há pesquisas independentes no Irã), desencadeou os últimos grandes protestos no país, que levaram à prisão de 2.500 pessoas, somente em Teerã, segundo as autoridades, e um número desconhecido de mortos. Até hoje os adversários de Ahmadinejad naquela eleição, Mir Hossein Moussavi — provável verdadeiro vencedor — e Mehdi Karroubi, estão sob prisão domiciliar.

Mas o líder espiritual tem outra leitura dos protestos. “Em eventos recentes, inimigos do Irã se aliaram e usaram vários meios de que dispõem, incluindo dinheiro, armas, política e serviços de inteligência, para perturbar a República Islâmica”, afirma uma mensagem postada em sua conta no Twitter. “O inimigo está sempre buscando uma oportunidade e qualquer brecha para se infiltrar e atacar a nação iraniana.”

Khamenei lembrou a guerra Irã-Iraque (1980-88), durante a qual o regime de Saddam Hussein recebeu apoio dos EUA e da Europa Ocidental. E disse que, se o inimigo tivesse vencido naquela época, a situação do país hoje seria pior do que a da Líbia e da Síria.

Trata-se de uma referência à atuação de americanos e europeus, que apoiaram a Primavera Árabe, e das monarquias sauditas do Golfo Pérsico, que patrocinaram grupos radicais islâmicos nos dois países. No caso da Síria, o Irã, por meio da milícia libanesa Hezbollah e de outros grupos xiitas sob seu patrocínio, ajudaram o ditador Bashar Assad, da minoria alauíta (uma derivação do xiismo), a recuperar o território. A Rússia também ajudou.

Atualmente, Arábia Saudita e Irã se enfrentam indiretamente no Iêmen. A milícia houthi, pertencente a uma minoria xiita apoiada pelo Irã, luta contra o governo da maioria sunita, com ajuda saudita.

Os iranianos comuns têm seus próprios motivos para estar nas ruas enfrentando a morte. Mas o presidente Donald Trump e seu vice, Mike Pence, dão munição à teocracia iraniana, com mensagens de apoio aos manifestantes. Para eles, é uma forma de se diferenciar do governo anterior, do democrata Barack Obama.

“Enquanto Donald Trump for presidente e eu vice, os Estados Unidos não repetirão o vergonhoso erro de nosso passado quando outros cruzaram os braços e ignoraram a resistência heróica do povo iraniano quando lutava contra seu regime brutal”, tuitou Pence. “A forte e crescente resistência do povo iraniano hoje dá esperança e fé para todos os que lutam pela liberdade e contra a tirania. Não devemos e não vamos desapontá-los.”

Até o moderado Rouhani protestou contra as declarações de apoio de Trump aos manifestantes, como ingerência nos assuntos iranianos. Trump não certificou o cumprimento das condições do acordo nuclear por parte do Irã, embora as agências especializadas afirmem que ele está sendo cumprido. Ainda este mês, o presidente pode anunciar a ruptura do acordo, retomando as sanções contra o petróleo iraniano.

Diante disso, Khamenei alegou que o presidente americano é “inimigo dos iranianos”, e lembrou que ele já os chamou de “terroristas”. Em sua primeira viagem internacional, em maio, Trump visitou Israel e a Arábia Saudita, reaproximando-se do reino e oferecendo-lhe apoio na disputa por influência regional com o Irã. Os sauditas em seguida romperam relações com o Catar, por sua proximidade com o Irã.

Trump não está ajudando os manifestantes.

Publicado no app EXAME Hoje (02/01). Copyright: Grupo Abril. Todos os direitos reservados.

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