Irã aproveitou ‘exaustão’ dos EUA para lançar desafio nuclear

Iniciativa foi do líder espiritual, Khamenei. Ahmadinejad, com sua retórica anti-Israel, até atrapalhou

TEERÃ – A crise nuclear iraniana sugere duas perguntas centrais: por que agora e o que virá depois. Na verdade, as aspirações nucleares do Irã não são de agora. O programa foi lançado em 1968 pelo xá Reza Pahlev, um bom amigo dos Estados Unidos. A reação americana ao surgimento de uma potência nuclear perto de Israel não foi diferente da atual. O Irã – como o Brasil – recorreu à Alemanha. Com a Revolução Islâmica de 1979, os alemães abandonaram o barco. A então União Soviética assumiu seu lugar. O reator de Bushehr, no sudoeste do Irã, é resultado disso.

Com 11% das reservas reconhecidas de petróleo do mundo e 15% das de gás, o Irã realmente precisa de energia nuclear? Parece que sim. O país consome 42% do petróleo que produz, e essa fatia aumenta a cada ano. Estima-se que, em 2020, não sobrará mais petróleo para exportar. O gás, assim como as hidrelétricas, respondem pelo consumo de energia e aquecimento. Segundo o governo, essa matriz restringe o crescimento industrial do país. O Irã quer exportar mais petróleo e mais gás, substituindo-os pela energia nuclear.

Paralelamente, o Irã, signatário do Tratado de Não-Proliferação Nuclear, incursionou, em 1987, no mercado negro dos componentes da indústria nuclear. Foi flagrado em 2003 pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). Em janeiro, o presidente Mahmoud Ahmadinejad mandou romper os lacres da AIEA na central de enriquecimento de urânio de Natanz, a noroeste de Teerã. No dia 11, anunciou que o Irã tinha completado o ciclo, em escala experimental. Até o fim do ano, pretende atingir escala industrial. Sempre com fins pacíficos.

O presidente George W. Bush avisou que os EUA não tolerarão um Irã nuclear. A atitude desafiante de Ahmadinejad aborreceu até os tradicionais aliados do Irã, como Rússia e China.

É engano atribuir tudo isso a Ahmadinejad. Dele é apenas o estilo. Esse tipo de decisão cabe ao aiatolá Ali Khamenei, “líder espiritual”, equivalente a chefe de Estado na teocracia iraniana. “Khamenei decidiu transformar o Irã numa potência nuclear”, diz o analista político Saidi Laylaz. O estilo de Ahmadinejad é quase um impedimento. Suas declarações sobre “varrer o Estado sionista do mapa” dificultam os planos nucleares iranianos.

Os mapas explicam por que o escudo nuclear seria vital para o Irã. Três quartos de suas fronteiras são com países “diretamente dominados formal e militarmente” pelos EUA, aponta Laylaz: Turquia, Iraque, Arábia Saudita, Paquistão e Afeganistão, além do Golfo Pérsico, patrulhado pelas esquadras americanas. Sobram o Azerbaijão e o Turcomenistão, aliados dos EUA, e o Mar Cáspio.

Ainda no início do seu primeiro mandato, em janeiro de 2002, Bush incluiu o Irã em um suposto “Eixo do Mal”, ao lado do Iraque e da Coréia do Norte. Hoje, o Iraque está ocupado. A Coréia do Norte se assumiu como potência nuclear. “Entre o suicídio e a morte, o Irã preferiu tentar uma última chance”, diz Laylaz. Dois outros analistas independentes iranianos, que preferem não ter seus nomes publicados, concordam que simplesmente não havia alternativa.

Por que agora?

Os Estados Unidos estão virtualmente exauridos no Iraque. As lideranças xiitas mais respeitadas no Iraque provêm do exílio no Irã. “O governo iraniano ainda nem explorou o potencial desestabilizador dessas lideranças”, avalia um analista. “Os xiitas ainda não se levantaram.” Além disso, há uma percepção, no Irã, de que o presidente Bush está politicamente debilitado no plano doméstico.

O Tesouro iraniano tem os cofres cheios. O presidente anterior, Mohamad Khatami, um reformista moderado, recebeu o país endividado em 1997, e o entregou, no ano passado, com reservas de US$ 20 bilhões, e sem dívidas. Sua ortodoxia econômica custou a eleição aos candidatos reformistas e moderados. Ahmadinejad se elegeu com a promessa de “levar o dinheiro do petróleo para a mesa dos pobres”. Com o barril de petróleo na casa dos US$ 70, as exportações somam US$ 50 bilhões ao ano.

E Ahmadinejad cumpre sua promessa. “Pela primeira vez em 27 anos, alguém nos escuta”, diz Shahla Shatie, líder da associação dos aposentados. “Estamos tão felizes com o presidente.” Não é para menos. O governo aumentou a aposentadoria de 1,180 milhão de rials (US$ 130) para 4 milhões (US$ 440). Os subsídios são generosos. O litro da gasolina não atinge os US$ 0,20, os alimentos são baratos, os funcionários de muitas empresas ganham os bilhetes de trem e metrô, o preço da passagem de ônibus urbanos é ínfimo.

Ahmadinejad não é apenas populista. É popular. “Eu o compararia a Hugo Chávez”, diz um professor de ciência política da Universidade de Teerã.

O presidente também não tem problemas no Parlamento. O Conselho de Guardiães, controlado pelo clero conservador, vetou dezenas de candidatos de oposição, pavimentando uma sólida maioria governista no Parlamento. Os dois blocos – direita e esquerda, como são chamados – têm disputas sobre a condução da economia. O primeiro é mais liberal. O segundo, mais estatizante. Em questões de Estado, como o programa nuclear ou a política externa, o apoio é unânime.

Os militares também estão com o governo, que os mantém contentes entregando-lhes os contratos mais gordos nos setores de petróleo, petroquímica e infra-estrutura. Para que os repassem, com os devidos benefícios da intermediação, para joint ventures entre companhias multinacionais e empresas locais criadas especificamente para cada contrato.

Entretanto, dizem os analistas, a liderança espiritual e o governo sabem que a bonança não é para sempre. Quando disse, na semana passada, que o petróleo ainda está barato, Ahmadinejad não estava apenas fazendo mais uma de suas provocações. Estava sendo sincero. O governo iraniano mantém baixo o nível de exigências dos contribuintes cobrando muito poucos impostos. Sua fonte de renda é o petróleo. E as demandas – da população aos militares – para que abra os cofres continuarão. “Um barril a US$ 40 seria o colapso do regime iraniano”, acredita Laylaz.

Assim, o programa nuclear iraniano é uma resposta múltipla para os problemas do governo. Como gerador de energia, libera o petróleo e o gás para a exportação. Como gerador de crise, eleva o preço do petróleo e, com ele, as receitas do Irã, quarto maior produtor e exportador do mundo. Como gerador de dissuasão, promete uma proteção considerada crucial diante das ameaças que rondam o país. Isso, se não acabar por concretizar essas ameaças, numa ação militar americana.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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