O santuário que exalta o martírio

Os que deram a vida pelo Islã são lembrados no túmulo de Khomeini, cuja revolução ampliou o conceito de mártir

TEERÃ – O Santuário Sagrado do Imam Khomeini é um complexo de cerca de 10 mil metros quadrados, com quatro cúpulas azuis e uma no centro banhada a ouro, rodeada por quatro minaretes também dourados. A cúpula dourada tem 68 metros de altura, numa referência ao ano de 1.368 do calendário solar persa, quando o profeta Maomé realizou a Héjira, emigração de Meca para Medina.

O edifício principal possui 72 janelas, representando os 72 homens que morreram com o imam (mensageiro de Deus) Hussein, na Batalha de Kerbala, no sul do Iraque, em 680. Hussein e seus seguidores foram imolados por muçulmanos que negavam o status de sucessor do profeta a ele e a seu pai, Ali, genro de Maomé, assassinado durante uma oração. O martírio de Hussein cimentou a separação dos “xiitas” (“partido de Ali”), do restante dos muçulmanos.

Ao lado da cúpula, uma bandeira vermelha representa o sangue de todos os mártires xiitas, assim como dezenas de pombas pintadas nas paredes do complexo. Central na identidade xiita, a noção do martírio foi ampliada pelo establishment teológico iraniano depois da Revolução Islâmica de 1979, incorporando também os atentados suicidas. O Alcorão prevê que os suicidas vão para o inferno. Pela reinterpretação, aqueles que se explodem para matar “infiéis” que ameaçam o Islã asseguram o paraíso para si e seus familiares.

A releitura abriu caminho para as ações do grupo libanês xiita Hezbollah, a partir de 1982, e do grupo palestino sunita Hamas, criado em 1987; ambos patrocinados pelo Irã. E acabou assimilada ao redor do mundo, por grupos como Irmandade Muçulmana, no Egito, e Al-Qaeda, no Afeganistão.

Muitos iranianos celebraram o aniversário de nascimento do profeta Maomé, que completou ontem 1.436 anos, no santuário onde está enterrado o líder da revolução, o aiatolá Ruhollah Khomeini.

Erguido às pressas depois de sua morte, em 1989, o santuário é uma obra inacabada, com estruturas metálicas que ainda vão dar lugar a colunas de concreto e a revestimento “do melhor azuleijo que há”, segundo adiantou um dos guardas que inspecionavam nossas conversas com os fiéis (“nada de política”). O chão da enorme mesquita é de mármore coberto parcialmente por tapetes, nos quais homens e mulheres, separados por biombos de plástico, fazem suas preces.

Khomeini, filho e neto de mulás (sacerdotes), usava turbante preto porque era seyed, ou descendente direto do profeta. Para os peregrinos do santuário, o vínculo entre um e outro não poderia ser mais imediato. “Khomeini está para nossa revolução assim como o profeta está para o Islã”, compara Mohamad Randjba, um advogado de 40 anos. “O profeta combateu os idólatras. Khomeini fez o mesmo no Irã.”

“O imam significa tudo na vida para mim”, resume Hossein Komidjani, de 36 anos, dono de uma locadora de vídeo em Teerã. “Depois do profeta, é ele.” O que ele fez? “Ressuscitou o Irã. Os valores religiosos estavam perdidos. Ele os reavivou.” Como muitas famílias, Komidjani acampou com a mulher e os três filhos no parque que circunda o complexo. Chegaram na noite de sábado e voltariam na de ontem. “Viemos ficar perto do imam.”

A cerca de 30 quilômetros dali, no norte de Teerã, há um outro ponto de peregrinação no aniversário do profeta. É a casa onde viveu Khomeini depois que voltou do exílio na França, em 1979, em seguida à derrubada do xá Reza Pahlevi por uma aliança de fundamentalistas e esquerdistas seculares (logo desencantados com a revolução e alienados do poder).

No bairro montanhoso de Djamoron, Khomeini instalou-se com sua mulher numa pequena casa alugada, de sala, quarto, cozinha e banheiro. Da sala de 10 metros quadrados, com um sofá, uma pequena mesa e uma estante de poucos livros, Khomeini atravessava, nas noites de quinta-feira, uma plataforma até um pequeno auditório construído à frente da casa, onde fazia o seu sermão semanal.

Contendo as orientações gerais sobre amplo espectro de temas – moral, política interna e externa -, o sermão era transmitido ao vivo por rádio e TV. Forrado de tapetes, o pequeno auditório é também hoje um local de orações, aonde muitos fiéis chegam, choram e rezam em frente a sua imagem, como fazem os católicos diante dos santos.

Hossein Tolui, de 25 anos, um ex-lutador de judô que está estudando para entrar na universidade, tem uma recordação especial deste lugar: aos cinco anos, veio com o irmão adulto, professor de teologia, e outras crianças, visitar o imam, depois que um passeio pela montanha de Kolakchar foi cancelado. “Pedimos permissão para visitar o imam e, como era muito amável, mágico, nos recebeu com muito gosto, pessoalmente. Ele conquistava pelo coração”, recorda. “Vim celebrar o aniversário do profeta aqui porque Khomeini representa, hoje, o que Maomé representou em seu tempo.”

Para os xiitas, Khomeini trouxe a mensagem de Deus enquanto não reaparece o 12.° Imam, o Oculto, esperado por eles.

Muitas coisas mudaram, desde seu tempo. A simplicidade do lugar onde viveu contrasta com o santuário erguido pelo regime para o seu descanso. O aiatolá Ali Khamenei, também um seyed, que o substituiu como líder supremo, vive e trabalha num imponente e inacessível complexo, que ocupa quatro quintos de um grande quarteirão, no centro de Teerã. O Palácio de Mármore, do xá, “espreme-se” no outro quinto.

Mas a palavra do líder supremo, agora Khamenei, continua indisputável. E o martírio, no centro de todas as mensagens. “As ameaças americanas não nos assustam”, diz Komidjani, na frente de sua barraca, no parque do santuário. “Eu era muito jovem e lutei na guerra. Agora, meus dois filhos adolescentes, e até o de cinco anos, gritam ‘morte à América’. Esta geração não tem medo da guerra.”

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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