Os ventos da mudança em Teerã

Dez anos de sanções sobre a exportação de petróleo e sobre transações financeiras pelo Irã chegaram ao fim em janeiro deste ano, depois do acordo nuclear firmado em julho de 2015, suscitando uma onda de otimismo no país. Entretanto, embora o Irã esteja retomando rapidamente as exportações de petróleo, os iranianos ainda não sentiram uma melhora no seu poder aquisitivo. Eles dizem que os preços dos bens de consumo pararam de subir, mas ficaram estacionados em um patamar muito alto, não alcançado pelos seus salários, e que o ambiente continua desfavorável para os negócios. Um mergulho no dia a dia e nos dados da economia iraniana permite diferenciar o que era consequência das sanções e o que se deve simplesmente ao sistema político e econômico do país.

De maneira geral, os iranianos ouvidos por Exame Hoje concordam que, de janeiro para cá, os aluguéis em Teerã e os preços dos carros caíram, os preços dos alimentos permanecem estáveis e a oferta de medicamentos aumentou. Mas os bens de consumo e os serviços continuam muito caros, e a maioria diz que o dinheiro que ganha não chega até o fim do mês.

Um veterinário de 35 anos contou que tem uma renda variável de 50 a 60 milhões de riales (R$ 5.882 a R$ 7.055), paga 14 milhões (R$ 1.646) de aluguel e gasta 12 milhões (R$ 1.411) com alimentação, para ele e a mulher. Situação mais ou menos parecida com a do diretor de uma construtora, de 36 anos. Ele ganha cerca de 50 milhões de riales por mês, paga 12 milhões de aluguel e gasta 14 milhões com alimentação. Sua mulher, de 30 anos, trabalha em uma escola de cursos preparatórios para exames, e ganha 17 milhões de riales (R$ 1.999) por mês.

Como em outros lugares, a situação dos aposentados e professores é pior. Um professor aposentado de 57 anos diz que teve de voltar a trabalhar por causa da crise. Ele ganha 14 milhões de riales (R$ 1.646) de aposentadoria e só com alimentação para ele e sua mulher gasta 7 milhões, além do aluguel, que consome outros 8 milhões, superando o seu benefício. Ele está dando aulas em um colégio particular, que lhe paga cerca de 10 milhões de riales (R$ 1.162).

Quando são entrevistados, sobretudo por jornalistas estrangeiros, os iranianos preferem não se identificar, com receio de problemas com as autoridades.

Antes, a folga era maior. A classe média urbana iraniana tradicionalmente leva uma vida não de luxo, mas confortável. A pressão inflacionária levou a um nível de descontentamento que forçou o conservador líder espiritual Ali Khamenei a permitir a eleição em 2013 do presidente Hassan Rouhani, um moderado, abrindo caminho para o acordo nuclear com o chamado P5+1 (os cinco membros do Conselho de Segurança da ONU —Estados Unidos, França, Inglaterra, Rússia e China —e mais a Alemanha), em junho do ano passado. Mesmo com os orçamentos apertados, a classe média iraniana está aliviada, porque os preços pararam de subir. Eles contam que, antes do levantamento das sanções, o preço do pão podia dobrar em uma semana, enquanto noutra era a vez do leite e dos derivados, por exemplo. Agora, não tomam mais esses sustos.

As exportações de petróleo demoraram um pouco a decolar, mas as estimativas são de que tenham aumentado 60% em maio, em relação ao mesmo mês do ano passado, subindo de 1,3 milhão de barris por dia para 2,1 milhões. As encomendas europeias atingiram a metade dos níveis anteriores às sanções de 2006. A demora na retomada tem a ver não só com um certo tempo necessário para firmar contratos de venda, mas também com a necessidade de recuperar a frota dos petroleiros. Dos cerca de 60 navios-tanque pertencentes ao Irã, 20 precisavam de reparos em abril, segundo fontes do setor ouvidas pela agência Reuters.

O país encontra dificuldades de contratar navios estrangeiros, não só porque há uma forte demanda global por petroleiros, mas, principalmente, por receio de fazer negócios com o Irã. Os Estados Unidos continuam proibindo transações com o Irã em dólares e o envolvimento de empresas americanas, incluindo bancos, em razão de outras sanções, impostas depois da Revolução Islâmica de 1979. É um grande problema para o comércio de petróleo e a contratação de petroleiros, ambos cotados em dólares.

“Não há um prêmio para fazer negócios no Irã e há muitas outras opções, os mercados estão movimentados, as tarifas estão boas”, observa Paddy Rodgers, diretor da Euronav, empresa de frete de navios-tanque. “Não quero abrir uma conta em euros em um banco de Dubai para fazer comércio com o Irã. Seria loucura.”

De acordo com Michele White, conselheira da Intertanko, associação que representa empresas de navios-tanque, há uma relutância por parte dos associados em retornar ao comércio iraniano por causa da proibição do uso do sistema financeiro americano e do acesso a dólares. O fato de empresas americanas não poderem negociar com o Irã e nem com empresas de outros países que o façam restringe drasticamente as opções de seguro para o transporte do petróleo iraniano.

Para completar, a Arábia Saudita, o grande adversário do Irã na região, proíbe a entrada de navios com bandeira iraniana em suas águas. E o Bahrein, aliado da Arábia Saudita e com rusgas próprias com o Irã, por causa de seu apoio às manifestações de xiitas contra a monarquia sunita, tem barrado o acesso a seus portos por navios que tenham atracado na costa iraniana em suas três últimas paradas.

Além disso, o Irã está voltando ao mercado no pior momento possível, por causa do excesso de oferta de petróleo no mundo e das eleições americanas, que introduzem um grau adicional de incerteza sobre os movimentos futuros das empresas.

Apesar de tudo, o Irã está recuperando parte da fatia de mercado que havia perdido, vendendo seus barris a preços mais baixos que os da Arábia Saudita. Há informações de que os sauditas pretendem aumentar a sua produção nos próximos meses para se contrapor ao aumento das vendas do Irã.

O petróleo é a face comercial de uma disputa geopolítica entre os dois países, cuja marca principal de diferenciação é a corrente xiita do Islã, professada pela maioria no Irã, e a sunita, na Arábia Saudita. Na Síria, no Iraque e em muitos outros lugares onde existem disputas entre sunitas e xiitas (ou, no caso sírio, sua derivação alauíta), ambos patrocinam grupos armados de um e de outro.

A retomada das exportações do petróleo não tem tido como contrapartida um ressurgimento dos negócios nos outros setores da economia. E isso, por dois motivos. O primeiro é de ordem prática, e diz respeito às mesmas dificuldades financeiras observadas no setor de petróleo. Os bancos têm muito receio de realizar operações com o Irã, depois do trauma sofrido em 2014 pelo BNP-Paribas, multado  em US$ 9 bilhões por violar as sanções. O secretário de Estado americano, John Kerry, já procurou tranquilizar os bancos estrangeiros, de que não haverá retaliações, mas o setor se mostra cauteloso.

Um funcionário de uma empresa de exportação e importação em Teerã conta que foi esses dias ao banco ver se já se podia fazer transferência entre uma instituição estrangeira e uma iraniana, mas recebeu um “não” como resposta. “Os bancos não se atrevem”, diz ele. “Têm medo de perder benefícios dos EUA.” Outro empregado em uma agência de turismo afirma que, para cada pacote que vende no valor de € 4 mil, por exemplo, tem de pagar de € 200 a € 300 de comissão para bancos chineses fazerem a triangulação entre o país do cliente e o Irã. Cartões de crédito não funcionam no Irã desde a imposição das sanções relacionadas com a revolução de 1979. Depois das sanções relativas ao programa nuclear, em 2006, os bancos estrangeiros deixaram o Irã, e não voltaram ainda. “O levantamento das sanções é como uma rodovia recém-construída, mas que ninguém usa”, define um funcionário do governo iraniano. Muitas delegações de empresários vêm e vão, mas não concretizam negócios e nem sequer trocam cartões de visita, com medo de deixarem “pegadas”. E aqui chegamos ao segundo fator de inibição: os maiores e mais lucrativos segmentos da economia estão vinculados à Guarda Revolucionária, as forças armadas de elite, subordinadas ao líder espiritual Ali Khamenei. A Guarda, que distribui oportunidades de negócios e de privilégios para uma plutocracia em troca de apoio político ao líder, está sob sanções dos Departamentos de Estado e do Tesouro dos Estados Unidos, sob acusação de envolvimento no programa nuclear e de abusos de direitos humanos. E o governo iraniano como um todo está na lista do Departamento de Estado de patrocinadores do terrorismo.

Essa realidade política não tende a mudar. Embora no Iraque estejam lutando contra o inimigo comum do Ocidente, o Estado Islâmico, a Guarda e as milícias xiitas sustentadas pelo Irã estão metidas até o pescoço na defesa do regime de Bashar Assad na Síria, por exemplo. Internamente, está havendo um recrudescimento do líder espiritual. Khamenei tem feito discursos hostis ao Ocidente e em favor da imposição rígida do código de conduta moral do islamismo conservador.

Os sinais são de que o líder espiritual, que controla o Conselho Guardião da Constituição, que aprova e reprova candidatos, não apoiará a candidatura do presidente Hassan Rohani à reeleição no ano que vem. Khamenei tem se reaproximado do ex-presidente Mahmud Ahmadinejad, com o qual rompera por causa de sua influência crescente sobre a Guarda Revolucionária e também por sua retórica provocativa, que acirrou os ânimos do Ocidente na crise nuclear e levou à imposição das sanções. Outro possível protegido na eleição presidencial do ano que vem seria Qassem Suleimani, comandante da Força Quds, a legião estrangeira da Guarda Revolucionária.

Apesar de tudo isso, não se deve subestimar o impacto benéfico do levantamento das sanções — espécie de retirada do bode da sala — sobre a economia iraniana no curto prazo. Em relatório de 1.º de abril, o Banco Mundial projeta crescimento de 4,2% do PIB neste ano e de 4,6% em 2017, impulsionado principalmente pela produção de petróleo e gás. Os índices foram -1,9% em 2013; 4,3% em 2014; e 1,9% no ano passado. Com a melhora das receitas provenientes das exportações, o déficit deve cair de 1,8% em 2016 para 1% no ano que vem. E o balanço das contas correntes pode ser superavitário em 2017, de novo em função das exportações de petróleo.

Agora, imagine se a política não atropelasse a economia. Bem, mas isso não acontece só no Irã.

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