Casa guarda segredo de bombardeio

Vizinho diz que viu Saddam no local antes do ataque; proprietário garante alugou para assistente de Qusay

BAGDÁ – Um cheiro de carniça exala da cratera deixada por quatro bombas de 900 quilos, onde os pedaços de nove corpos estão enterrados sob os escombros. Sobre as pedras e areia das três casas destruídas há uma banheira de cabeça para baixo, um aquecedor elétrico de US$ 4, uma mala de couro marrom, duas almofadas cor-de-rosa e um tapete rasgado.

Saltaram para a borda do imenso buraco um carrinho de bebê azul e uma panela esmaltada vermelha. Fragmentos do cotidiano de três famílias. Uma faixa preta apoiada em dois pedaços de pau fincados na areia, com as palavras escritas em branco e os nomes em amarelo, faz as vezes de lápide: “A esposa do haji (título dado aos que peregrinaram a Meca) Mohammed Suleiman se foi, assim como seus filhos Mohammed, Seif e Salma”. No canto direito do terreno, num pequeno monte de areia assinalado com uma estaca, está enterrado o único pedaço de corpo encontrado nos escombros. Um pequeno buquê de flores foi depositado há pouco ali.

Do lado esquerdo, no número 11 da Rua 33, uma casa semidestruída guarda o segredo desse “ataque cirúrgico” do dia 7, do qual ela era o verdadeiro alvo. Ao contrário das casas arrasadas pelas bombas, onde viviam famílias, esse sobrado funcionava como um escritório. Na sala da frente, de 7 metros por 3, fios recém-puxados forneciam cinco linhas telefônicas.

No chão da cozinha, a evidência definitiva, para o olhar dos iraquianos, de que ali não se encontravam pessoas comuns: pãezinhos compridos, de casca fina e arredondada, no formato de cachorro quente. Nos últimos anos, com o país sob embargo econômico, nas filas das padarias, os iraquianos comuns só têm encontrado os tradicionais pães árabes em forma de disco, com farinha de qualidade inferior, obtida em troca de petróleo num programa administrado pela ONU. Apenas a casta que cortejava Saddam Hussein tinha direito aos luxos do contrabando.

No chão do banheiro do andar de cima, a primeira página da edição do dia 31 de março do jornal Al-Jumhouria, rasgada e coberta de pó, traz a seguinte manchete: “A vitória desta batalha reluz no semblante dos iraquianos fortes e bravos”. Ao lado, a embalagem plástica de cinco lâminas de barbear Derby-2 e um maço de cigarros Miami, ambos vazios. Abdul Massir, de 44 anos, cuja mulher e casal de filhos de 6 e de 8 anos morreram no bombardeio, garante que viu Saddam entrar no escritório, ao sair de casa, às 14h10 daquele dia, para ir comprar comida. O ataque ocorreu às 15h15.

“Não acredite nas mentiras que estão dizendo”, diz Intesar al-Mahdi, ao entrar na casa e reconhecer o intérprete do Estado, que mora no bairro. “Eu sou o dono desta casa.” Capitão da marinha mercante, Al-Mahdi, de 48 anos, que morou no Rio de Janeiro entre 1983 e 84, trabalhando para a Petrobrás, conta que alugava a casa para Faleh al-Azari, assessor de Qusay Hussein, filho de Saddam.

Era Al-Azari que estava no escritório pouco antes do bombardeio. Não Qusay nem muito menos Saddam, garante Al-Mahdi, amigo de Al-Azari, para quem alugou a casa há um ano, por US$ 200 mensais. E de quem, obviamente, agora não tem notícia.

Agentes iraquianos contratados pela CIA, por intermédio de representantes da oposição no exílio, provavelmente emitiram dali um sinal via satélite, informando aos aviões americanos as coordenadas exatas de um alvo prioritário. O assessor de Qusay e seus guardas fugiram.

O impacto das bombas, que estilhaçou os vidros de todas as janelas nas redondezas, no bairro de Al-Mansur, comprometeu irremediavelmente a estrutura do sobrado, arrancando um pedaço do andar de cima e causando rachaduras nas paredes, teto e alicerce. Al-Mahdi, que estimava o valor da casa em US$ 80 mil, pretende agora demoli-la. Com ela, irá um pouco da história dessa guerra.

 Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

Deixe o seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*